O Segredo de uma Promessa
Baseado
no roteiro de
Garry
Michael White
Danielle Steel
Tradução de
A.B. PINHEIRO DE LEMOS
14ª
EDIÇÃO
Editora Record
RIO DE JANEIRO -
SÃO PAULO
2006
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos
Editores de Livros, RJ.
Steel,
Danielle
S826s O segredo
de uma promessa / Danielle Steel; tradução
de A.B. Pinheiro de Lemos. - 14ª ed. - Rio de
Janeiro: Record,
2006.
Tradução
de: The promise
"Baseado
no roteiro de Garry Michael White"
ISBN
85-01-01564-4
1.
Romance norte-americano. I. White, Garry Michael.
II. Lemos, A.B. Pinheiro de (Alfredo Barcelos Pinheiro
de), 1938- .III.
Título.
CDD-813
93-0202 CDU
- 820(73)-3
Título original norte-americano: THE PROMISE
Um romance de DANIELLE STEEL
Baseado no roteiro de GARRY MICHAEL WHITE
Copyright © 1978 by MCA Publishing, uma divisão de MCA, Inc.
Direitos no Brasil adquiridos pela Distribuidora Record
Capítulo
1
O
sol do começo da manhã incidia em suas costas quando pegaram as bicicletas
diante da Heliot House, no campus de Harvard. Pararam por um momento, a fim de
sorrirem um para o outro. Era maio e os dois eram muito jovens. Os cabelos
curtos da moça brilhavam ao sol. Os olhos dela encontraram os dele, no momento
em que começou a rir.
— E
então, Doutor em Arquitetura, como se sente?
— Pergunte-me
isso dentro de duas semanas, depois que eu conseguir o doutorado.
O rapaz
sorriu para ela, sacudindo da testa uma mecha de cabelos louros.
— Seu diploma que se dane! Estava me referindo à noite de
ontem!
Ela
sorriu novamente. O rapaz deu-lhe uma palmada no traseiro.
— Ahn...
E você, como se sente, Srta.
McAllister? Ainda pode andar?
Os dois
estavam passando a perna por cima das bicicletas e a moça fitou-o com uma
expressão zombeteira.
— E você
pode?
E com
isso partiu, distanciando-se rapidamente na pequena bicicleta que ele lhe dera
de presente no aniversário, poucos meses antes. Ele estava apaixonado pela moça.
Sempre estivera apaixonado por ela. Sonhara com ela por toda a sua vida. E a
conhecia há dois anos.
Fora um
tempo solitário que ele tivera em Harvard antes disso. Já no segundo ano do
curso de doutorado estava resignado a continuar assim. Não queria o que os
outros desejavam. Não queria uma jovem de Radcliffe, Vassar ou Wellesley na
cama a seu lado. Para Michael, havia sempre algo que faltava. Queria algo mais.
Estrutura, substância, alma. Resolvera o problema temporariamente no verão
anterior, tendo um caso com uma amiga de sua mãe. A mãe nada soubera, é claro.
E fora extremamente divertido e satisfatório. Era uma mulher muito atraente, de
trinta e tantos anos, bem mais moça que a mãe, é claro. E era uma editora da Vogue. Mas fora simplesmente um
passatempo agradável. Para ambos. Com Nancy, porém, era diferente.
Ele o
compreendera desde o primeiro momento em que a vira, na galeria de Boston que
estava expondo os quadros dela. Havia uma solidão obcecante nas paisagens
rurais, uma ternura solitária nas pessoas retratadas. Michael sentiu-se
dominado por uma profunda compaixão, com vontade de consolar aquelas pessoas e
a mulher que as pintara. Ela estava na galeria naquele dia, com uma boina
vermelha e um velho casaco de pele de guaxinim, a pele delicada ainda luzindo
da caminhada até a Charles Street, com os olhos brilhando, o rosto cheio de
vida. Michael jamais desejara outra mulher tanto quanto a desejara. Comprara
dois quadros e a levara para jantar no Lockober´s. Mas o resto levara muito
mais tempo. Nancy McAllister não era uma mulher propensa a ceder prontamente
seu corpo ou seu coração. Fora solitária demais por tempo demais para se
entregar facilmente. Aos 19 anos, já era uma mulher sábia e calejada na dor. A
dor de estar só. A dor de ser abandonada. Era o que a atormentava desde que
fora colocada num orfanato, ainda bem pequena. Não podia mais recordar o dia em
que a mãe a deixara no orfanato, pouco antes de morrer. Mas lembrava-se
nitidamente do frio horrível dos salões. Do cheiro das pessoas estranhas. Dos
sons pela manhã, enquanto, deitada na cama, lutava para conter as lágrimas.
Iria recordar-se dessas coisas pelo resto de sua vida. Por muito tempo, pensara
que nada poderia preencher o vazio que havia dentro de si. Mas agora tinha
Michael.
O
relacionamento entre eles nem sempre fora fácil. Mas era um relacionamento
muito forte, baseado no amor e no respeito. Haviam fundido os mundos de cada um
e disso resultara algo belo e raro. E Michael também não era nenhum tolo.
Conhecia os perigos de se apaixonar por alguém "diferente", como sua
mãe insistia em ressaltar... sempre que tinha oportunidade. Mas não havia nada
de "diferente" em
Nancy. A única coisa diferente era o fato de que ela era uma
artista, não uma simples estudante. Nancy não estava mais na fase de procura,
já era o que desejava. E ao contrário das outras mulheres que Michael
conhecia, ela não estava experimentando candidatos, mas simplesmente escolhera
o homem a quem amava. Em dois anos, Michael jamais a desapontara. E ela tinha
certeza de que isso jamais aconteceria. Afinal, conheciam-se muito bem. O que
poderia haver que ela já não soubesse? Sabia de tudo. As coisas engraçadas, os
segredos tolos, os sonhos da infância, os medos desesperados. E, através dele,
Nancy passara a respeitar sua família. Até mesmo a mãe.
Michael
nascera na tradição, condicionado desde a infância a herdar um trono. Não era
algo que ele encarasse com leviandade. Nem mesmo gracejava a respeito. Havias
ocasiões em que isso chegava até a assustá-lo. Teria capacidade de se mostrar à
altura do mito? Mas Nancy não tinha a menor dúvida quanto a isso. O avô de
Michael, Richard Cotter, fora um arquiteto. O pai dele também. Fora o avô que
fundara um império. Mas havia sido a fusão do império Cotter com a fortuna
Hillyard, através do casamento dos pais de Michel, que criara o império Cotter-Hillyard
de hoje. Richard Cotter soubera como ganhar dinheiro, mas fora o dinheiro
Hillyard, um dinheiro antigo, tradicional, que proporcionara os rituais e
tradições do poder. Havia ocasiões em que era um manto incômodo de se usar, mas
não se podia dizer que Michael não gostasse. E Nancy também o respeitava. Ela
sabia que Michael estaria um dia no comando do império Cotter-Hillyard. No
princípio, haviam conversado a respeito incessantemente. Mais tarde, voltaram a
conversar constantemente, quando compreenderam como era profunda e séria a
ligação que os unia. Mas Michael
sabia que encontrara uma mulher que podia assumir tudo, tanto as responsabilidades de família
quanto as funções nos negócios. O orfanato nada fizera a fim de preparar Nancy
para o papel que Michael sabia que ela iria desempenhar, mas a base parecia
estar fixada na própria alma dela.
Michael
contemplava-a agora com um orgulho quase insuportável, enquanto ela se
distanciava a sua frente, segura de si, forte, as pernas ágeis pedalando
vigorosamente, virando a cabeça para trás de vez em quando a fim de fitá-lo e
rir. A vontade de Michael era aumentar a velocidade e alcançá-la... tirá-la da
bicicleta... ali... na grama... da maneira como tinham feito na noite
anterior... da maneira... Ele tratou de afastar o pensamento de sua mente e
disparou atrás dela.
— Ei, espere
por mim, sua bruxinha!
Michael
estava emparelhado com ela um momento depois. Continuaram a pedalar, agora um
pouco mais devagar. Michael estendeu a mão pelo curto espaço que os separava.
— Está linda
hoje, Nancy. — A voz dele era uma carícia no ar da primavera. Ao redor deles, o
mundo era verde e viçoso. — Sabe quanto a amo?
— Não seria a
metade do que o amo, Sr. Hillyard?
— Isso
demonstra o quanto sabe, Srta. Nancy Calçalinda!
Ela riu,
como sempre fazia, ao ouvir o apelido. Michael sempre a fazia feliz. Ele fazia
coisas maravilhosas. Nancy sempre pensara assim desde o primeiro momento,
quando ele entrara na galeria e ameaçara tirar as próprias roupas, todas, se
ela não lhe vendesse todos os quadros.
— Acontece
que a amo pelo menos sete vezes mais do que me ama.
— Essa não! —
Nancy sorriu-lhe novamente, nariz no ar e disparou à frente outra vez. — Eu o
amo muito mais, Michael.
— Como sabe?
Ele estava
acelerando para alcançá-la.
— Papai Noel
me contou.
E com isso,
Nancy se distanciou novamente. Desta vez, Michael deixou-a ir na frente pelo,
caminho estreito. Estavam num animo festivo e ele gostava de contemplá-la. A
forma esguia dos quadris na calça de jeans, a cintura fina, os ombros
impecáveis com a suéter vermelha amarrada frouxamente e o balanço maravilhoso
dos cabelos pretos. Michael podia contemplá-la por anos a fio. Na verdade, era
justamente isso o que estava planejando fazer. O que o fazia lembrar... tinha
planejado conversar com ela a respeito naquela manhã. Diminuiu novamente a
distância que os separava e bateu no ombro de Nancy gentilmente.
— Com
licença, Sra. Hillyard.
Ela teve um
sobressalto ao ouvir as palavras, depois sorriu timidamente, o sol incidindo em
seu rosto. Michael podia ver as sardas no rosto dela, quase como poeira de ouro
deixada por duendes na superfície cremosa da pele.
— Eu disse...
Sra. Hillyard...
Michael
pronunciou as palavras com infinito prazer. Tinha esperado por dois anos.
— Não
está querendo precipitar um pouco as coisas, Michael?
Ela parecia
hesitante, quase temerosa. Michael ainda não falara com Marion. E enquanto
isso não acontecesse, não importava o que ele e Nancy pudessem ter acertado
entre si.
— Não acho
que esteja precipitando coisa alguma. E já tem duas semanas que estou pensando
em fazer isso. Logo depois da formatura.
Há
muito que haviam combinado um casamento pequeno, íntimo. Nancy não tinha
família e Michael queria partilhar o momento com ela, não com um elenco de
milhares de pessoas ou um exército de fotógrafos da sociedade.
— Para dizer a verdade, estava planejando
seguir esta noite para Nova York a fim de conversar com Marion.
— Esta
noite?
Havia um
eco de medo na voz de Nancy. Ela deixou que a bicicleta fosse diminuindo a
velocidade lentamente, até parar. Michael assentiu em resposta. Nancy
estava cada vez mais pensativa, enquanto contemplava as colinas luxuriantes ao
redor.
—
O que acha que ela vai dizer?
Nancy
estava com medo de olhar para Michael. Com medo de ouvir a resposta.
— Sim, é
claro. Está mesmo preocupada com isso?
Era uma
pergunta sem sentido e ambos sabiam disso. Tinham muito com que se preocupar.
Marion não era uma mera dama de honra. Era a mãe de Michael e tinha toda a
ternura do Titanic. Era uma mulher de força, determinação, concreto e
aço. Havia assumido os empreendimentos da família com a morte do pai e voltara
a fazê-lo, com renovada determinação, depois que o marido morrera. Nada podia
deter Marion Hillyard. Absolutamente nada. Certamente não uma garota esguia ou
seu filho único. Se não queria que os dois casassem, nada a faria dizer aquele
"sim", embora Michael simulasse não ter a menor dúvida a respeito. E
Nancy sabia exatamente o que Marion Hillyard pensava dela.
Marion jamais
tentara esconder seus sentimentos. Ou pelo menos não o fizera a partir do
momento em que chegara à conclusão de que o "caso" de Michael com
"aquela artista" podia ser algo sério. Chamara Michael a Nova York e
o lisonjeara, persuadira e seduzira, para depois brigar, ameaçar e pressionar.
E finalmente se resignara. Ou pelo menos dera tal impressão. Michael encarara
essa posição como um indício encorajador, mas Nancy não tinha tanta certeza
assim. Tinha a impressão de que Marion sabia o que estava fazendo e decidira,
por enquanto, ignorar a "situação". Não foram feitos convites, não
foram formuladas acusações, nunca foram apresentadas desculpas por coisas
ditas a Michael no passado. Mas também não surgiram novos problemas. Para ela,
Nancy simplesmente não existia. E, estranhamente, Nancy sempre se surpreendia
ao descobrir como isso a magoava. Não tendo família, ela sempre acalentara
sonhos estranhos em relação a Marion. Que podiam ser amigas, que Marion
gostaria dela, que ela e Marion iriam fazer compras para Michael... que Marion
seria... a mãe que ela não tivera ou conhecera.
Mas Marion não se enquadrava facilmente nesse papel. Em dois anos, Nancy tivera
muitas oportunidades para compreender isso. Somente Michael se apegava
obstinadamente à posição de que a mãe acabaria por ceder, que as duas se
tornariam grandes amigas, a partir do momento em que Marion aceitasse o
inevitável. Mas Nancy nunca tivera tal certeza. Ela chegara mesmo a forçar
Michael a discutir a possibilidade de Marion nunca aceitá-la, jamais concordar
com o casamento. O que fariam então?
— Nesse caso,
pegamos o carro e seguimos para o juiz de paz mais próximo. Afinal, já somos
ambos maiores de idade.
Nancy sorrira
com a simplicidade daquela solução. Sabia que nunca poderia ser tão fácil
assim. Mas que diferença fazia? Depois de dois anos juntos, eles já se sentiam
de qualquer forma casados.
Ficaram
parados em silêncio por um longo momento, contemplando a paisagem. Depois,
Michael pegou a mão de Nancy e murmurou:
— Eu a amo,
querida..
— Também o
amo.
Nancy
fitou-o com expressão preocupada e Michael silenciou os olhos dela com um
beijo. Mas nada podia sufocar as dúvidas que ambos tinham. Isto é, nada exceto
a conversa com Marion. Nancy deixou a bicicleta cair e com um suspiro
aconchegou-se lentamente entre os braços de Michael.
— Gostaria
que fosse tudo mais fácil, Michael.
— E será. Vai
ver só. E agora vamos adiante. Vamos dar um passeio ou ficamos parados aqui o
dia inteiro?
Michael
deu-lhe novamente uma palmada no traseiro. Nancy sorriu, enquanto ele pegava a
bicicleta dela. E no momento seguinte estavam de novo pedalando, rindo,
brincando, cantando, fingindo que Marion não existia. Só que ela existia.
Sempre existiria. Marion era mais uma instituição do que uma mulher. Marion
era eterna. Pelo menos na vida de Michael. E agora na vida de Nancy.
O sol subiu
mais alto pelo céu enquanto eles pedalavam pelos campos, alternadamente
adiantando-se um ao outro ou ficando emparelhados, em um momento gracejando
exuberantemente, no outro ficando silenciosos e pensativos. Já era quase
meio-dia quando alcançaram a Revere Beach e avistaram o rosto fami1iar vindo em
sua direção. Era Ben Avery, com uma nova garota a seu lado. Outra loura de
pernas compridas. Todas pareciam rainhas colegiais. E muitas eram mesmo.
— Oi, vocês
dois! Estão indo para a feira?
Ben
sorriu-lhes e depois, com um gesto vago da mão, apresentou Jeannette. Trocaram cumprimentos.
Nancy protegeu os olhos com a mão e olhou na direção da feira. Ainda faltavam
alguns quarteirões para alcançá-la.
—
Vale a pena parar?
—
E como vale! Ganhamos um cachorro rosa... — Ben apontou para a criatura pequena
e horrenda na cesta de Jeannette — uma tartaruga verde que deu um jeito de se
perder, e duas latas de cerveja. Além do mais, eles têm um milho cozido que
está sensacional.
— Acaba
de me convencer. — Michael olhou para Nancy e sorriu. — Vamos até lá?
— Claro.
Vocês já estão voltando?
Mas
Nancy podia ver claramente que estavam. Ben tinha um brilho reconhecível nos
olhos e Jeannette parecia estar de pleno acordo. Nancy sorriu para si mesma ao
observá-los.
— Já, sim.
Estamos andando desde as seis horas desta manhã. Estou exausto. Por falar nisso
o que vocês vão fazer no jantar esta noite? Não querem visitar-me para uma pizza?
O quarto de
Ben ficava próximo do quarto de Michael.
— O que vamos fazer no jantar esta noite, señor?
Nancy olhou para Michael , com um sorriso brejeiro. Mas ele estava
sacudindo a cabeça.
— Tenho de resolver alguns problemas essa noite.
Vamos deixar para outra ocasião.
Era um rápido lembrete do encontro com Marion.
— Está certo. Até mais tarde.
Ben e Jeannette acenaram e depois se afastaram, enquanto Nancy olhava
para Michael.
— Vai mesmo
procurá-la esta noite?
— Vou, sim. E
pare de se preocupar com isso. Tudo vai dar certo. Por falar nisso, mamãe diz
que ele conseguiu o lugar.
— Ben?
Nancy
levantou os olhos inquisitivamente, enquanto recomeçavam a pedalar, a caminho
da feira.
— Isso
mesmo. Começamos ao mesmo tempo. Em áreas diferentes, é verdade, mas começamos
no mesmo dia.
Michael
parecia satisfeito. Conhecia Ben desde o tempo do curso preparatório e eram
como irmãos.
— Ben já
sabe?
Michael
sacudiu a cabeça, com um sorriso de conspirador. — Achei que seria melhor deixá-lo
experimentar a emoção de receber a notícia oficialmente. Não quis estragar-lhe
esse prazer.
Nancy
também sorriu.
— Você é um
bom sujeito e eu o amo, Hillyard.
— Obrigado,
Sra. H.
— Pare com
isso, Michael.
Nancy queria
demais aquele sobrenome para ouvi-lo pronunciado como um gracejo, até mesmo por
Michael.
— Não vou
parar. E é melhor começar logo a se acostumar. — Ele parecia subitamente sério.
— Eu vou
me acostumar... quando chegar o momento certo. Mas até lá, no entanto, Srta. McAllister
soa melhor.
— Por
mais duas semanas, para ser exato. Aposto que posso vencê-la numa corrida!
E os dois
dispararam em frente, lado a lado, ofegando e rindo. Michael alcançou a entrada
da feira cerca de 80 segundos antes de Nancy. Ambos pareciam bronzeados,
saudáveis e despreocupados.
— E então,
meu caro senhor, o que vamos fazer primeiro?
Mas Nancy já adivinhara o que seria e estava
absolutamente certa.
— Ao
milho cozido, é claro! Precisava perguntar?
— Não.
Deixaram
as bicicletas perto de uma árvore, sabendo que ali, naqueles campos tranqüilos,
ninguém iria roubá-las. Foram andando de braços dados. Dez minutos depois
estavam se lambuzando com a manteiga que escorria, enquanto comiam o milho
cozido. Em seguida comeram cachorros-quentes e tomaram cerveja gelada. Nancy
acompanhou tudo com uma gigantesca porção de algodão-doce.
— Como pode
comer essa porcaria?
— Fácil...
porque é delicioso.
As
palavras saíram meio truncadas através do algodão-doce rosado e pegajoso, mas
Nancy tinha a expressão deliciada de uma criança de cinco anos.
— Já lhe
falei ultimamente como você é bonita?
Nancy
sorriu-lhe, exibindo o rosto todo salpicado de algodão.
Michael pegou
um lenço e limpou-lhe o queixo.
— Se conseguisse
limpar-se, poderíamos tirar uma fotografia.
— É mesmo?
Onde?
O nariz de
Nancy desapareceu novamente por trás de outra porção que ela abocanhou.
— Você é
impossível, querida. A fotografia é ali.
Michael
apontou para uma barraca em que podiam meter as cabeças através de buracos
redondos e tirar uma foto sobre trajes exóticos... Foram até lá e escolheram
Rhett Butler e Scarlet O'Hara. E por mais estranho que pudesse parecer, nem
mesmo pareciam tolos na fotografia. Nancy ficou linda sobre o traje pintado
meticulosamente. A beleza delicada de seu rosto e a precisão das feições se
ajustaram perfeitamente ao traje imensamente feminino da beldade sulista. E
Michael ficou parecendo um jovem libertino. O fotógrafo entregou-lhes a foto e
recebeu o seu dólar, comentando:
—Eu deveria
ficar com essa foto. Vocês dois saíram muito bem.
— Obrigada.
Nancy
ficou comovida com o elogio, mas Michael limitou-se a sorrir. Ele sempre sentia
o maior orgulho de Nancy. Apenas mais duas semanas e... Mas Nancy puxou-lhe a
manga freneticamente, arrancando-o dos devaneios.
— Olhe ali!
Um jogo de argolas!
Nancy
sempre quisera jogar as argolas na feira quando era criança, mas as freiras do
orfanato invariavelmente alegavam que era muito caro.
— Podemos?
— Mas é
claro, minha querida!
Michael
fez-lhe uma reverência, ofereceu o braço e tentou levá-la caminhando
tranqüilamente na direção da barraca. Mas Nancy estava excitada demais para
andar normalmente. Estava quase pulando como uma criança e o excitamento dela o
deliciava.
— Podemos
jogar agora?
— Claro, meu amor!
Michael
estendeu um dólar e o homem por trás do balcão entregou a Nancy quatro vezes a
quantidade habitual de argolas. A maioria dos fregueses pagava apenas 25 cents.
Mas Nancy era inexperiente no jogo e todas as suas tentativas malograram.
Michael observava-a divertido.
— Exatamente
que prêmio está querendo?
— As contas. —
Os olhos de Nancy brilhavam como os de uma criança e as palavras saíam quase
como um sussurro. — Nunca tive antes um colar espalhafatoso!
Era algo
que ela sempre desejara ter quando era menina. Algo bem vistoso, brilhante,
frívolo.
— Não resta a
menor dúvida de que é uma pessoa fácil de contentar, meu amor. Tem certeza de
que não prefere o cachorrinho rosa?
Era
igual ao que Jeannette levava na cesta. Mas Nancy sacudiu a cabeça,
determinada.
— Quero as
contas.
— Seu desejo
é uma ordem para mim.
E
Michael arremessou todas as três argolas perfeitamente no alvo. Com um sorriso,
o homem por trás do balcão entregou-lhe as contas. Imediatamente, Michael
colocou-as no pescoço de Nancy.
— Voilà,
mademoiselle! Tudo seu!
Acha que devemos fazer um
seguro de seu colar?
— Quer
parar de gozar as minhas contas? Acho que elas são maravilhosas!
Nancy
tocou-as suavemente, encantada por saber que estavam faiscando em seu pescoço.
— Acho
que você é maravilhosa. Seu coração deseja mais alguma coisa?
Nancy sorriu.
— Mais
algodão-doce.
Michael
comprou outro chumaço de algodão-doce e depois foram voltando lentamente para
as bicicletas.
— Está
cansada?
— Não muito.
— Não quer
seguir um pouco mais adiante? Há um lugar maravilhoso aqui perto. Podemos ficar
sentados lá por algum tempo, contemplando o mar.
— Boa idéia.
Partiram
novamente, só que desta vez mais devagar. O clima de carnaval desaparecera e
estavam ambos imersos em seus próprios pensamentos, a maior parte sobre o
outro. Michael estava começando a desejar que estivessem de volta à cama e
Nancy não teria discordado. Estavam-se aproximando de Nahant quando ela avistou
o local que Michael escolhera, na extremidade de uma ponta de terra, sob uma
árvore antiga aprazível. Nancy ficou contente por terem feito aquela última
etapa do passeio.
— Oh,
Michael, é lindo! .
— Não é
mesmo?
Sentaram-se
na relva, pouco antes da estreita ponta de terra começar. À distância, podiam
observar as ondas quebrarem suavemente sobre um recife logo abaixo da superfície.
— Sempre quis
trazer você até aqui.
— E estou
contente que me tenha trazido.
Ficaram
sentados em silêncio por algum tempo, de mãos dadas. Depois, Nancy se levantou
abruptamente.
— O que
foi?
— Quero fazer
uma coisa.
— Pode ir até ali, atrás das moitas.
— Não é isso,
seu chato!
Nancy saiu
correndo pela praia. Michael seguiu-a lentamente, sem ter a menor idéia do que
ela pretendia fazer. Nancy parou ao lado de uma pedra grande na areia e tentou
deslocá-la, mas não conseguiu
— Deixe-me
ajudá-la, sua tolinha. O que está pretendendo fazer?
Michael
estava aturdido.
— Quero
apenas afastá-la por um segundo... assim.
A pedra
cedera sob a pressão de Michael, revelando uma depressão úmida na areia.
Rapidamente, ela tirou as contas azuis do pescoço, segurou-as por um momento,
de olhos fechados, depois as largou na areia, no lugar sobre o qual a pedra
estava antes.
— Muito bem,
Michael, pode pôr a pedra de volta no lugar.
— Em cima das
contas?
Ela assentiu,
os olhos não se desviando do vidro azul a faiscar.
— Essas
contas serão o nosso vínculo, um vínculo físico, enterradas enquanto esta
pedra, esta praia e estas árvores continuarem aqui. Combinado?
— Combinado.
— Michael sorriu gentilmente. – Estamos sendo muito românticos.
— Por
que não? Quando se é afortunado o bastante para se ter amor, temos de
comemorar! Fazer com que tenha um lar!
— Tem
razão, tem absoluta razão. Muito bem, aqui é o lar do nosso amor.
— E agora
vamos fazer uma promessa. Prometo que nunca esquecerei o que está aqui nem
esquecerei o que representa. E agora é a sua vez.
Nancy tocou
na mão dele, que lhe sorriu novamente. Michael nunca a amara tanto.
— E eu
prometo... prometo nunca dizer adeus a você...
E depois, sem
qualquer razão em particular, os dois riram. Porque era maravilhoso ser jovem,
ser romântico, até mesmo banal. O dia inteiro havia sido maravilhoso.
— Vamos
voltar agora?
Nancy
assentiu. De mãos dadas, voltaram para o lugar em que haviam deixado as
bicicletas. E duas horas depois estavam no pequeno apartamento de Nancy, na
Spark Street, perto do campus. Michael olhou ao redor ao cair sonolento no
sofá, compreendendo mais uma vez o quanto gostava do apartamento dela, o quanto
representava um lar para ele. O único lar verdadeiro que já conhecera. O
apartamento gigantesco da mãe em
Nova York nunca lhe dera realmente a impressão de lar. Essa
impressão ele sentia no minúsculo apartamento de Nancy. Que possuía todos os
toques afetuosos e maravilhosos de Nancy. Os quadros que ela pintara ao longo
dos anos, as cores simples que escolhera, um sofá de veludo castanho, um tapete
felpudo que ela comprara de um amigo. Havia sempre flores por toda parte,
muitas plantas, às quais ela dedicava um cuidado meticuloso. Lá estavam a
pequena mesa de tampo de mármore impecável onde comiam e a cama de latão que
rangia de prazer quando faziam amor.
— Tem alguma
idéia do quanto amo este apartamento, Nancy.
— Claro que
tenho. — Ela olhou ao redor, nostalgicamente. — Também amo muito. O que vamos
fazer quando nos casarmos?
— Levar todas
essas suas coisas lindas para Nova York e encontrar um pequeno lar aconchegante
para recebê-las.
E foi nesse
momento que algo atraiu a atenção de Michael — O que é isso? Algo novo?
Ele estava
olhando para o cavalete de Nancy, onde estava um quadro ainda nos estágios
iniciais, mas já apresentando uma qualidade fascinante. Era uma paisagem de
árvores e campos. Mas quando se aproximou, Michael percebeu que havia um menino
escondido numa árvore, com as pernas pendendo.
— O
menino vai continuar a aparecer depois que puser folhas na árvore?
— Provavelmente.
De qualquer forma, porém, saberemos que está na árvore. Gosta do quadro?
Os olhos de
Nancy brilhavam, enquanto ela observava a aprovação de Michael. Ele sempre
compreendera perfeitamente o trabalho dela.
— Adoro.
— Então será
o seu presente de casamento... quando estiver terminado.
— Negócio
fechado. E por falar em presentes de casamento... — Michael olhou para o
relógio. Já eram cinco horas da tarde e ele queria estar no aeroporto às seis. —
Está na hora de eu partir.
— Precisa mesmo
ir esta noite?
— Tenho, sim.
É importante. Voltarei dentro de algumas horas. Devo chegar ao apartamento de
Marion por volta das sete e meia ou oito horas, dependendo do trânsito em Nova York. Posso
pegar o último vôo de volta, às onze horas, chegando em casa por volta da meia-noite. Está bem assim,
minha linda angustiada?
— Está bem. —
Mas Nancy estava hesitante, apreensiva pela partida dele. Não queria que
Michael fosse a Nova York e ao mesmo tempo não sabia por quê. — Espero que tudo
corra bem.
— Tenho
certeza de que vai correr.
Mas ambos
sabiam que Marion só fazia o que queria, só escutava o que desejava ouvir e
compreendia apenas o que lhe convinha. Mas Michael sabia que, de alguma forma,
iriam vencê-la. Tinham de fazê-lo. Ele precisava ter Nancy. E nada mais
importava. Abraçou-a uma última vez, antes de ajeitar uma gravata no colarinho
da camisa esporte e pegar um casaco leve nas costas de uma cadeira. Deixara-o
ali naquela manhã. Sabia que estaria fazendo calor em Nova York, mas sabia
também que tinha de aparecer no apartamento de Marion de paletó e gravata.
Marion não tolerava "hippies" ou pessoas insignificantes... como
Nancy. Ambos sabiam o que ele estava enfrentando quando se deram um beijo de
despedida na porta.
— Boa sorte.
— Eu a amo.
Por longo
tempo, Nancy ficou sentada no apartamento silencioso olhando para a fotografia
que haviam tirado na feira. Rhett e Scarlet, amantes imortais, naqueles trajes
absurdos pintados na madeira, os rostos metidos através de buracos. Mas não
pareciam tolos. Pareciam felizes. Nancy se perguntou se Marion seria capaz de
compreender isso, se ela saberia a diferença entre ser feliz e tolo, entre o
real e o imaginário. Tinha dúvidas se Marion poderia entender qualquer coisa.
Capítulo
2
A mesa da
sala de jantar brilhava como a superfície de um lago. A perfeição cintilante só
era interrompida num ponto, onde estava um único jogo de linho irlandês de cor
creme, sobre o qual descansava a porcelana azul e dourada. Havia um serviço de
café de prata ao lado do prato, assim como um pequeno sino todo ornado. Marion
Hillyard recostou-se na cadeira, deixando escapar um pequeno suspiro, enquanto
exalava a fumaça do cigarro que acabara de acender. Estava bastante cansada
naquele dia... Os domingos sempre a cansavam. Havia ocasiões em que ela
pensava que trabalhava mais em casa do que no escritório. Sempre passava os
domingos cuidando de sua correspondência pessoal, examinando as contas que a
cozinheira e a governanta mantinham rigorosamente em dia, fazendo listas do que
julgava ser necessário consertar no apartamento e dos artigos que precisava
para completar seu guarda-roupa, além de planejar os cardápios da semana. Era
um trabalho tedioso; mas há anos que ela o fazia, mesmo antes de começar a dirigir
o império da família. Depois que assumira o lugar do marido, continuara a
passar os domingos cuidando da casa e tomando conta de Michael, no dia de folga
da babá. A recordação a fez sorrir. Fechou os olhos por um momento. Aqueles
domingos haviam sido preciosos, umas poucas horas em companhia do filho sem que
ninguém interferisse; sem que ninguém aparecesse para afastá-lo dela. Mas seus
domingos já não eram mais assim; haviam deixado de ser há muitos anos. Uma
pequena lágrima
brilhante insinuou-se entre as pestanas, enquanto Marion permanecia imóvel na
cadeira, vendo o filho como fora dezoito anos antes, um garoto de seis anos e
todo dela. Como havia amado aquele menino! Teria feito qualquer coisa por ele.
E fizera mesmo. Mantivera um império para Michael, preservando o legado de uma
geração para a seguinte. Era o seu presente mais valioso para Michael
Cotter-Hillyard. E ela passara a amar o império quase tanto quanto amava o
filho.
— Está linda,
mamãe.
Os olhos
dela se abriram bruscamente, em surpresa, deparando com o filho parado na
entrada em arcada da sala de jantar revestida de lambris. A visão dele naquele
momento quase a fez chorar. Sentiu vontade de abraçá-lo, como o fizera por
todos aqueles anos. Em vez disso, porém, limitou-se a sorrir lentamente para o
filho.
— Não ouvi
você chegar.
Não era
um convite para Michael se aproximar, não havia qualquer indício do que ela
estava sentindo. Com Marion, ninguém jamais sabia o que se passava dentro
dela.
— Usei minha
chave. Posso entrar?
— Claro. Quer
uma sobremesa?
Michael
avançou lentamente para ela, um tênue sorriso nervoso a lhe contrair os
lábios. Depois, como um garotinho, deu uma espiada no prato da mãe.
— Hum...o
que era? Parece alguma coisa à base de chocolate...
Marion
soltou uma risadinha e sacudiu a cabeça. Michael jamais cresceria. Ou pelo
menos não em algumas coisas.
— Profiteroles.
Quer um pouco? Mattie ainda está lá na copa.
— Provavelmente
comendo o que sobrou.
Ambos
riram, pelo que sabiam ser provavelmente verdadeiro.
Mesmo assim,
Marion tocou o sino.
Mattie apareceu
um instante depois, de uniforme preto, guarnecido de renda, rosto pálido. Ela
passara a vida inteira correndo, buscando, fazendo coisas para os outros, com apenas um
breve domingo semanal a que podia chamar de todo seu. E quando chegava o “dia”
tão cobiçado, ela descobria que nada tinha para fazer.
— Pois não,
madame?
— Traga
café para Sr. Hillyard, Mattie. E... quer sobremesa, querido? — Michael sacudiu
a cabeça — Apenas café então.
— Pois não,
madame.
Por um
momento, Michael se perguntou, como já fizera muitas vezes antes, por que a mãe nunca dizia "obrigado"
às empregadas. Como se
elas tivessem nascido para cumprir suas ordens. Mas ele sabia que era
exatamente isso o que a mãe pensava. Marion sempre vivera cercada por criados,
secretárias, toda espécie de empregados que se podia imaginar. Tivera uma
criação solitária, mas das mais confortáveis. A mãe morrera quando ela tinha
três anos, num acidente que vitimara também o único irmão de Marion, que seria
o herdeiro do trono arquitetônico da família. O acidente deixara apenas Marion
para assumir o papel de filho substituto. E ela o assumira eficazmente.
— Como vai a
escola?
— Quase
acabando, graças a Deus. Só faltam mais duas semanas.
— Sei
disso. E estou muito orgulhosa de você. Um doutorado é algo maravilhoso
para se ter, especialmente em arquitetura.
Por alguma
razão, aquelas palavras despertaram em Michael o desejo de exclamar, "Oh!
Mamãe!", como fazia quando tinha nove anos de idade.
— Vamos
entrar em contato com o jovem Avery nesta semana, para acertarmos o emprego
dele. Não lhe contou nada, não é mesmo ?
Marion
parecia mais curiosa do que austera. Na verdade, não se, importava com tal
detalhe. Julgara um tanto infantil que Michael pensasse que era tão importante
fazer uma surpresa a Ben.
— Não, não
contei. Ele vai ficar muito contente.
— Não é para
menos. Afinal, é um excelente emprego.
— Ele merece.
— Espero que
sim. — Marion jamais cedia um centímetro sequer. — E você? Está pronto para
começar a trabalhar? Sua sala estará pronta na próxima semana.
Os olhos
dela brilharam ao pensar nisso. Era um lindo gabinete, todo revestido de
madeira, como teria sido o do pai de Michael, com gravuras que haviam
pertencido ao pai de Marion, um impressivo conjunto de sofá e poltronas de couro,
móveis antigos. Ela os comprara em Londres, nas suas férias.
— Está
ficando maravilhoso, querido.
— Ótimo. — Ele
sorriu para a mãe por um momento, antes de acrescentar: — Tenho algumas coisas
que quero mandar emoldurar, mas vou esperar até dar uma olhada na decoração.
— Não
vai haver qualquer necessidade. Já providenciei tudo o que vai precisar para as
paredes.
E Michael
também tinha. Os quadros de Nancy. Havia agora um fogo súbito em seus olhos, um
ar de vigilância e cautela nos olhos de Marion. Ela percebera algo no rosto do
filho.
— Mamãe... — Ele
se sentou perto da mãe, soltando um pequeno suspiro e esticando as pernas,
enquanto Mattie chegava com o café. — Obrigado, Mattie.
— É sempre bem-vindo, Sr. Hillyard.
Ela lhe
sorriu tão afetuosamente quanto sempre o fazia. Ele era sempre amável, como se
detestasse incomodá-la, muito diferente da...
— Deseja mais
alguma coisa, madame?
— Não.
Para dizer a verdade... Michael, não quer tomar o café na biblioteca?
— Está
certo.
Talvez
fosse mais fácil conversar lá. A sala de jantar da mãe sempre o fizera recordar
os salões de baile que vira em mansões ancestrais. Não era propícia a conversas
íntimas, muito menos a uma suave persuasão. Ele se levantou e seguiu a mãe para
fora da sala, descendo três degraus atapetados e entrando na biblioteca, à
esquerda. De lá, tinha-se uma vista esplêndida da Quinta Avenida e de parte
considerável do Central Park. Mas havia também na sala uma lareira aconchegante
e duas paredes cobertas de livros. A quarta parede era dominada por um retrato
do pai de Michel. Mas era um retrato de que ele gostava, em que o pai parecia
extremamente simpático, como alguém que se tinha vontade de conhecer. Quando
menino, Michael ia muitas vezes olhar para aquele retrato e
"conversava" em voz alta com o pai. A mãe o descobrira assim certa
ocasião e dissera-lhe que isso era um absurdo. Mais tarde, porém, Michael a descobrira
chorando naquela sala, olhando para o retrato, da mesma forma como ele fazia.
A mãe se
acomodou em seu lugar de sempre, uma cadeira Luís XV forrada em damasco bege e
de frente para a lareira. Naquela noite, o vestido dela era quase da mesma cor.
Por um momento, ao clarão da lareira, Michael julgou-a quase bonita. Marion já
o tinha sido e não fazia muito tempo. Ela estava agora com 57 anos. Michael nascera
quando a mãe tinha 33 anos. Ela não tivera tempo para ter filhos antes disso.
Marion era muito bonita naquela época. Possuía os mesmos cabelos louros, quase
cor de mel, que Michael tinha, só que agora estavam cada vez mais grisalhos. E
a vida em seu rosto se desvanecera. Fora substituída por outras coisas.
Principalmente pela preocupação com os negócios. E os olhos outrora de um azul
sereno pareciam quase cinzentos agora. Como se o inverno tivesse finalmente
chegado.
— Tenho o
pressentimento de que veio aqui esta noite para falar-me sobre algo importante,
Michael. É isso mesmo?
Será que ele
engravidara alguma mulher? Teria destruído o carro? Ferira alguém? Nada era
irreparável, é claro, contanto que Michael lhe contasse tudo. Ela estava
contente pelo fato do filho ter vindo procurá-la.
— Não é nada
de grave. Mas há algo que preciso discutir com você.
Errado.
Michael encolheu-se quase visivelmente diante de suas palavras. "Discutir."
Deveria ter falado que havia algo que queria contar e não discutir. Oh,!
diabo!
— Achei
que já era tempo de sermos francos um com o outro.
— Fala
como se geralmente isso não acontecesse.
— Em
algumas coisas, não acontece mesmo.
Todo o
corpo de Michael estava agora tenso. Ele se inclinou para frente, consciente de
que o pai olhava por cima de seu ombro.
— Não
somos francos em relação a Nancy, mamãe.
— Nancy?
Ela
parecia ignorar inteiramente o nome. Por um instante, Michael sentiu um impulso
de levantar-se e esbofeteá-la. Detestava a maneira como a mãe pronunciara o
nome de Nancy. Como se não passasse de uma criada.
— Nancy
McAllister. Minha amiga.
— Ah, sim... —
Houve uma pausa interminável, enquanto Marion mudava a posição da colher
esmaltada no pires. — E em que não somos francos em relação a Nancy?
Os olhos
dela estavam agora velados por uma mortalha de gelo cinzento.
— Tenta
fingir que ela não existe. E procuro não incomodá-la com isso. Mas a verdade,
mamãe, é que... vou me casar com ela. — Ele respirou fundo e recostou-se, antes
de arrematar: — Dentro de duas semanas.
— Entendo.
— Marion Hillyard estava perfeitamente imóvel. Os olhos não se mexiam, nem as
mãos, nem o rosto. Nada. — E posso perguntar por quê? Ela está grávida?
— Claro
que não!
— O que
é muita sorte. Sendo assim, posso perguntar por que vai se casar com ela? E por
que dentro de duas semanas?
— Porque
estarei formado então, mudando-me para Nova York e começando a trabalhar.
Porque faz sentido.
— Para
quem?
O gelo
estava se endurecendo e uma perna foi cruzada cuidadosamente sobre a outra,
com o ruído de seda. Michael sentiu-se constrangido sob a firmeza do olhar da
mãe. Ela não desviara os olhos dele uma única vez. Como nos negócios, Marion
estava se mostrando implacável. Era capaz de fazer qualquer homem encolher-se e
finalmente desmoronar.
— Faz sentido
para nós, mamãe.
— Pois não
faz para mim. Fomos chamados a construir um centro médico em São Francisco, pelo
mesmo grupo que está por trás do Hartford Center. Não terá tempo para uma
esposa. Estou contando muito com sua ajuda pelo próximo ano ou dois. Francamente,
querido, gostaria que esperasse.
Era a
primeira vez que Michael via a mãe abrandar um pouco uma posição, o que o levou
a pensar que talvez houvesse alguma esperança.
— Nancy será
útil para nós dois, mamãe. Não será uma distração para mim nem um estorvo para
você. Ela é uma moça maravilhosa.
— É possível.
Mas quanto a ser útil... Por acaso já pensou no escândalo?
Havia agora
um brilho de vitória nos olhos de Marion. Ela estava se preparando para o bote
e subitamente Michael prendeu a respiração como presa indefesa, sem saber por
que lado a mãe iria atacar. Ou como.
— Que
escândalo?
— Ela lhe
contou quem é, não é mesmo?
Oh, Deus! O
que viria agora?
— O que está
querendo insinuar com esse quem ela é?
— Exatamente
isso, posso ser mais específica.
Com um
movimento suave, felino, Marion largou a xícara numa mesinha e deslizou até sua
escrivaninha. Tirou uma pasta da última gaveta e entregou-a a Michael, sem
dizer nada. Ele segurou a pasta, indeciso, com medo de ver o que havia dentro.
— O que é isso?
— Um
relatório. Contratei um investigador particular para saber quem era a sua
amiguinha pintora. Não estava muito satisfeita.
O que era uma
atenuação da verdade. Marion ficara furiosa.
— Por favor,
Michael, sente-se e leia.
Ele não se
sentou, mas relutantemente abriu a pasta e começou a ler. Nas primeiras doze
linhas, descobriu que o pai de Nancy fora morto na prisão quando ela ainda era
bebê, e que a mãe morrera dois anos depois, como alcoólatra. Estava também
explicado que o pai dela fora condenado a sete anos de prisão por assalto a
mão armada.
— Não acha
que eram pessoas encantadoras, querido?
A voz dela
era ligeiramente desdenhosa. Abruptamente, Michael jogou a pasta em cima da
escrivaninha. O conteúdo deslizou rapidamente para o chão.
— Não vou ler
esse lixo.
— Não quer
ler... mas vai casar-se com esse lixo.
— Que
diferença faz quem foram os pais dela? Por acaso é culpa de Nancy?
— Não. É o
infortúnio dela. E o seu, se casar com ela. Seja sensato, Michael. Vai entrar
para um negócio em que milhões de dólares estão envolvidos em cada transação.
Não pode mais expor-se ao risco de um escândalo. Poderia nos arruinar. Seu avô
fundou esse império há mais de 50 anos e vai agora destruí-lo por causa de um
romance? Não seja absurdo. Está na hora de crescer, meu rapaz. Mais do que na
hora. Os tempos de aventuras vão se acabar para você exatamente dentro de duas
semanas.
Marion
estava agora inflamada, sem tirar os olhos do filho. Não ia perder aquela
batalha, não importava o que tivesse de fazer.
— Não
quero discutir esse problema com você, Michael. Não tem alternativa.
Marion
sempre lhe dissera aquilo. Sempre...
— Uma ova que
não tenho! — Era um súbito rugido, enquanto ele andava pela sala. — Não vou me
inclinar diante de você e de suas regras pelo resto da vida, mamãe! De jeito
nenhum! O que está pensando exatamente? Que vai me levar para o negócio,
paparicar-me até se aposentar e depois continuar a me controlar como um títere
de seu quarto? Pois saiba que isso não vai acontecer! Vou trabalhar para você e
mais nada! Não é dona de minha vida, nem agora nem nunca! E tenho o direto de
me casar com quem quiser!
— Michael!
Foram
interrompidos pelo som abrupto da campainha da porta. Os dois estavam de pé,
olhando-se, como jaguares numa jaula. O jaguar velho e o novo, cada um
ligeiramente temeroso do outro, ambos famintos pela vitória, ambos lutando pela
sobrevivência. Estavam ainda parados em lados opostos da sala, tremendo de
raiva, quando George Calloway entrou, percebendo prontamente que viera deparar
com uma cena de paixão intensa. Homem suave, elegante, de cinqüenta e tantos
anos, ele era há muito tempo o braço-direito de Marion. Mais do que isso, era
em grande parte a força por trás da Cotter-Hillyard. Mas, ao contrário de
Marion, raramente aparecia na linha de frente. Preferia exercer sua força das
sombras. Há muito que aprendera os méritos da força discreta. Isso lhe valera a
confiança e admiração de Marion há vários anos, assim que ela assumira o lugar
do marido na empresa. Marion fora então apenas uma figura de proa e George é
que realmente dirigira a Cotter-Hillyard pelo primeiro ano, enquanto
resolutamente, conscienciosamente, ensinava tudo a ela. E George fizera um bom
trabalho. Marion aprendera tudo o que ele lhe ensinara e muito mais. Ela era
agora uma força por si mesma, mas ainda se apoiava em George em todas as
operações de grande monta. Isso significava tudo para ele. Saber que Marion
ainda precisava dele depois de todos aqueles anos. Saber que ela sempre
precisaria. George podia agora compreender isso. Formavam uma equipe,
silenciosa, inseparável, cada um tão forte quanto o outro. Algumas vezes George
se perguntava se Michael sabia o quanto eram unidos. Duvidava muito. Michael
sempre fora o centro da vida da mãe. Por que iria perceber até que ponto George
estava envolvido? Sob certos aspectos, a própria Marion não chegava a
compreender. Mas George aceitava tudo. Dedicava seu afeto e energias à empresa.
E talvez algum dia... George olhou agora para Marion com uma preocupação
imediata. Aprendera a reconhecer a contração nos cantos da boca e a estranha
palidez por baixo do pó-de-arroz e rouge cuidadosamente aplicados.
— Você está bem, Marion?
George
conhecia mais a respeito da saúde dela do que qualquer outra pessoa. Marion lhe
confidenciara tudo, anos atrás. Alguém tinha de saber, pelo bem da empresa. Ela
tinha uma pressão assustadoramente alta e um problema cardíaco.
Por um
momento não houve resposta. Depois, ela desviou os olhos do filho para fixá-los
no associado e amigo de muitos anos.
— Estou... estou
bem. Desculpe. Boa noite, George. Pode entrar.
— Acho que
cheguei num momento errado.
— Absolutamente,
George. Eu já estava saindo.
Michael
virou-se para fitá-lo e nem ao menos conseguiu exibir um arremedo de sorriso.
Depois, olhou novamente para a mãe, mas não fez qualquer menção de se aproximar
dela.
— Boa noite,
mamãe.
— Telefono
para você amanhã, Michael. Podemos discutir o problema pelo telefone.
Michael
sentiu vontade de dizer algo odioso para a mãe, deixá-la amedrontada. Mas não
podia, não sabia como. E de que isso adiantaria?
— Michael...
Ele não
respondeu. Apertou solenemente a mão de George e depois saiu da sala, sem olhar
para trás. Não chegou a ver a expressão nos olhos da mãe ou a preocupação nos
de George, enquanto ela afundava lentamente de volta na cadeira e erguia as
mãos trêmulas ao rosto. Havia lágrimas nos olhos dela, que ocultou até mesmo de
George.
— O que
aconteceu?
— Ele vai
fazer uma loucura.
— Talvez não.
Todos nós ameaçamos fazer loucuras de vez em quando.
— Em
nossa idade, ameaçamos. Na idade de Michael, eles fazem.
"Todos
os meus esforços para nada", pensou Marion. "Os relatórios do
investigador particular, os telefonemas, os..." Ela suspirou e recostou-se
lentamente na cadeira.
— Já
tomou o seu remédio hoje, Marion? — Ela sacudiu a cabeça, quase
imperceptivelmente.
— Onde
está?
— Na
minha bolsa. Atrás da escrivaninha.
George
foi até lá, sem fazer qualquer comentário sobre as páginas do relatório
espalhadas sobre a mesa e o chão. Encontrou a bolsa de crocodilo preto, com um
fecho de ouro de 18 quilates. Conhecia bem aquela bolsa. Fora um presente de
Natal dele, três anos antes. Encontrou o remédio e voltou para junto de Marion,
com duas pílulas brancas na mão. Ela ouviu o barulho da xícara de café a seu
lado e abriu os olhos. Desta vez, Marion sorriu-lhe.
— O que eu
faria sem você, George?
— E o
que eu faria sem você?
George
não podia sequer suportar tal pensamento. — Devo ir embora agora? Você precisa descansar.
— Se ficar
sozinha, vou pensar em Michael e me tornarei cada vez mais angustiada.
— Ele ainda
vem trabalhar na firma?
— Vem, sim. O
problema é outro.
Ou seja,
a moça. George também estava a par disso, mas não queria pressionar Marion
naquele momento. Ela estava bastante angustiada, mas pelo menos a cor estava
agora voltando a seu rosto. Depois de engolir as pílulas, ela pegou um cigarro.
George acendeu-o, enquanto observava o rosto dela. Marion era uma linda mulher.
Ele sempre o achara. Mesmo agora, quando ela se tornava cada vez mais cansada
e doente. Ele se perguntou se Michael saberia o quanto a mãe estava doente.
Provavelmente não sabia, caso contrário não a deixaria transtornada daquela
maneira.
O que
George não sabia era que Michael estava igualmente desesperado e angustiado
naquele momento. Lágrimas ardentes lhe queimavam os olhos, enquanto seguia de
táxi para o aeroporto.
Ele
telefonou para Nancy assim que chegou ao terminal. Seu avião partiria dentro de
20 minutos.
— Como
foi o encontro?
Nancy
não pudera perceber coisa alguma pela maneira como ele a cumprimentara.
— Tudo bem.
Agora, quero que você entre em
ação. Prepare uma mala, vista-se, esteja pronta dentro de
uma hora e meia, quando estarei chegando aí.
— Pronta
para quê?
Nancy estava
aturdida, sentada no canto do sofá, toda enroscada, com o fone na mão. Michael
fez uma breve pausa, sorrindo em seguida. Era o seu primeiro sorriso em duas
horas.
— Para uma
aventura, meu amor. Vai descobrir quando chegar a hora.
— Acho que
ficou doido.
Ela estava
rindo, aquela sua risada suave e maravilhosa.
— Isso mesmo,
estou doido por você.
Michael
sentiu que voltava a ser ele próprio. Novamente, tudo começava a fazer sentido.
Estava de volta a Nancy. Ninguém poderia jamais tirar isso dele. Nem sua mãe.
Nem um relatório confidencial. Ninguém. Nada. Ele prometera naquele dia, na
praia, quando haviam enterrado as contas, que nunca diria adeus para Nancy. E
estava falando sério.
— Muito
bem, Nancy Calçalinda; trate de se mexer! Ah, sim... e não se esqueça de usar
algo novo, algo velho...
Ele não
estava apenas sorrindo agora; estava transbordando de felicidade.
— Está
querendo dizer...
A voz de
Nancy se desvaneceu no espanto.
— Estou
querendo dizer que vamos nos casar esta noite. Está certo para você?
— Está, sim.
Mas...
— Mas coisa
nenhuma, mocinha. Levante esse rabo daí e comece a se comportar como uma noiva
no dia do casamento.
— Mas por que
esta noite?
— Por uma
questão de instinto. Confie em
mim. Além do mais, é uma noite de lua cheia.
— Deve ser.
Nancy também
estava sorrindo agora. Ia casar-se. Ela e Michael iam casar-se.
— Eu a
verei dentro de uma hora, meu bem. Só
mais uma coisa, Nancy...
— O que
é?
— Eu a amo.
Michael
desligou e correu para o portão. Foi o último passageiro a embarcar no avião
para Boston. Nada podia detê-lo agora.
Capítulo
3
Ele estava
batendo na porta há quase 10 minutos, mas não ia desistir. Sabia que Ben estava
lá dentro
— Ben! Vamos,
abra a porta! Ben! Pelo amor de Deus, cara, abra logo essa porta!
Outra
saraivada de batidas e depois o som de passos, seguido por um súbito estrondo.
A porta se abriu para revelar um Ben sonolento, parado ali, inteiramente
atordoado, de cueca, esfregando a canela.
— São
apenas 11 horas, Ben. O que está fazendo dormindo a uma hora dessas? — O
sorriso no rosto de Ben revelou tudo, a um segundo olhar. — Ei, você está
chumbado!
— Até as
pontas dos dedos dos pés!
Ben olhou
para os pés, com um sorriso malicioso e as pernas balançando tropegamente.
— Pois
vai ter de ficar sóbrio bem depressa, companheiro. Preciso de você.
— Quero
que você se dane! Tomei seis Beefeaters com tônica e acha que vou desperdiçar
tudo isso? Essa não!
— Esqueça
tudo o mais e trate de se vestir.
— Estou
vestido! — Ele contraiu os olhos, com uma cara de infeliz, quando Michael
acendeu a luz. — Ei, que diabo está fazendo?
Mas
Michael limitou-se a sorrir, enquanto se encaminhava para a pequena cozinha, na
desordem mais total.
— O que andou
fazendo por aqui, Ben? Detonou uma granada de mão?
— Isso mesmo.
E vou meter uma pelo seu...
— Ora, ora,
esta é uma ocasião especial, Ben.
Michael
virou-se para sorrir-lhe, da entrada da cozinha. Por um momento, houve um
brilho de esperança nos olhos de Ben.
— E podemos
beber por conta dessa ocasião?
— Tudo o que
quiser. Só que depois.
— Essa não!
Ben desabou
numa poltrona e deixou que a cabeça recostasse nas almofadas.
— Não quer
saber qual é a ocasião, Ben?
— Não, se eu
não puder beber por conta. Vou terminar o curso de doutorado. E isso é algo
pelo qual posso beber.
— E eu vou me
casar.
— Isso é
ótimo... — No instante seguinte, Ben se endireitou na poltrona, arregalando os
olhos. — Você o quê?
— Ouviu
direito o que eu falei. Nancy e eu vamos nos casar.
Michael
falou com o orgulho sereno de um homem que sabe o que quer.
— E
vamos para uma festa de noivado?
Ben
exibia agora uma expressão de satisfação. Ali estava algo que valia pelo menos
outra meia dúzia de Beefeaters. Talvez até uns sete ou oito.
— Não é
uma festa de noivado, Ben Avery. Já lhe disse. É um casamento.
— Agora?
— Confusão novamente. Hillyard era de fato um pé no saco. — Por que agora?
— Porque queremos.
Além do mais, você está chumbado demais para entender qualquer coisa. Pode dar
um jeito para ficar de pé pelo tempo suficiente para ser nosso padrinho?
— Claro.
Ora, seu filho da mãe, você vai mesmo...
Ben
levantou-se de um pulo da poltrona, cambaleou perigosamente, bateu com o dedão
na mesinha do café.
— Mas
que merda!
— Trate
de vestir algumas roupas sem se matar, Ben. Vou fazer um café para você.
— Está
bem.
Ele
ainda estava murmurando consigo mesmo quando desapareceu no quarto, mas já
estava ligeiramente mais controlado quando voltou. Chegara mesmo a pôr uma
gravata sobre a T-shirt listrada de azul e vermelho. Michael fitou-o e
sacudiu a cabeça, com um sorriso.
— Poderia
pelo menos ter escolhido uma gravata que combinasse com essa camisa.
A gravata
era marrom escura, com padrões beges e pretos.
— Preciso
mesmo de uma gravata? — Ben parecia subitamente preocupado. — Não consegui
encontrar nenhuma que combinasse.
— Basta
agora levantar o zíper da calça e estaremos prontos. E talvez seja bom descobrir
onde está seu outro sapato.
Ben
olhou para os pés e descobriu que estava só com um sapato. Desatou a rir.
— Está certo,
estou chumbado. Mas por acaso eu sabia que ia precisar de mim esta noite?
Poderia pelo menos ter me contado esta manhã.
— Eu
ainda não sabia esta manhã.
Tal
resposta provocou uma expressão de seriedade nos olhos de Ben.
— Não sabia?
— Não.
— Tem certeza
do que está fazendo?
— Absoluta. E
não me venha com sermões. Já ouvi bastante esta noite. Trate apenas de terminar
de se arrumar decentemente para podermos ir buscar Nancy.
Michael
entregou ao amigo uma caneca de café fumegante.
Ben tomou um
gole prolongado e depois fez uma carranca.
— Mas
que desperdício de um bom gim!
— Pagaremos
quantos você puder tomar depois do casamento.
— Por
falar nisso, onde é que vai se casar?
— Já vai
descobrir. É uma cidadezinha linda, pela qual estou apaixonado há anos. Passei
um verão lá quando era menino. É o lugar perfeito.
— Tem uma
licença?
— Não há
necessidade. É uma dessas cidadezinhas malucas em que as pessoas podem casar-se
com a cara e a coragem. Está pronto?
Ben
engoliu o resto do café e assentiu.
— Acho
que sim. Puxa estou começando a ficar nervoso. Não está apavorado?
Ele
olhou para o amigo, mais sóbrio agora. Mas Michael parecia estranhamente calmo.
— Nem um pouco.
— Talvez
saiba o que está fazendo. Não sei... é que... o casamento... — Ben sacudiu a
cabeça e olhou novamente para os pés, o que o fez recordar que ainda precisava
encontrar o outro sapato. — Mas Nancy é uma garota sensacional.
— Muito
mais do que isso. — Michael avistou o outro sapato debaixo do sofá, e pegou-o.
— Ela é tudo o que sempre desejei.
— Então
espero que o casamento proporcione aos dois tudo o que querem, Michael. Para
sempre.
Havia um
brilho de ternura nos olhos de Ben e por um momento Michael segurou-o pelos
braços.
— Obrigado.
E no instante
seguinte os dois desviaram o olhar, ansiosos em partirem, para rirem novamente,
para saborearem o momento com alegria, ao invés de solenemente.
— Estou apresentável?
Ben
apalpou a calça para verificar se estava com a carteira, depois procurou as
chaves.
— Está
deslumbrante.
— Ora,
vá... Mas onde é que se meteram as minhas chaves?
Ben
olhou ao redor, desolado, enquanto Michael ria. As chaves estavam presas numa
das presilhas de cinto da calça dele.
— Vamos
logo embora, Avery. Já estamos atrasados.
Os dois partiram, de
braços dados, entoando canções de cervejaria de verões anteriores. Todo o
prédio podia ouvi-los, mas ninguém se importava realmente. Era povoado por
estudantes que viviam nas proximidades do campus e todos andavam promovendo os
maiores tumultos, quando faltavam duas semanas para terminarem as aulas.
Dez minutos
depois, estavam diante do prédio de Nancy, na Spark Street. Ela acenou
nervosamente da janela quando Michael buzinou. Tinha a sensação de que estava
pronta há horas. Um momento depois, estava parada ao lado do carro. Por alguns
segundos, os dois rapazes ficaram em silêncio. Foi Michael
o primeiro a falar:
— Deus
do céu, Nancy... você está maravilhosa! Onde conseguiu esse vestido?
— Eu o
tinha.
Eles
trocaram um sorriso prolongado. Nenhum dos dois se mexeu. Nancy sentiu-se de
repente uma noiva da cabeça aos pés, apesar da hora tardia e das circunstâncias
heterodoxas. Usava um vestido branco comprido e tinha uma pequena touca azul de
cetim sobre os cabelos pretos lustrosos. O vestido fora comprado quando servira
como dama de honra no casamento de uma amiga, três anos antes, mas Michael
nunca o tinha visto. Ela estava de sandálias brancas e levava um lenço de renda
muito antigo e bonito.
— Está vendo,
Michael? Algo velho, algo novo... o lenço era de minha avó.
E a pequena
touca era azul. Ela estava tão bonita que, por um momento, Michael ficou sem
saber o que dizer. Até mesmo Ben parecia ter ficado completamente sóbrio pela
contemplação dela..
— Está
parecendo uma princesa, Nancy.
— Obrigada,
Ben.
— Ei, você
tem algo emprestado?
— Como assim?
— Não está
lembrada? Algo velho, algo novo... algo emprestado... — Nancy riu e sacudiu a cabeça. — Pois
aqui está algo emprestado.
Ben inclinou
a cabeça para frente e começou a mexer em algo no pescoço. Um momento depois,
ele exibiu uma corrente de ouro delicada e bonita.
— É apenas um
empréstimo. Minha irmã me mandou de presente de formatura, mas abri antes. Pode
tomar emprestado para o casamento.
Ele se
inclinou para fora do carro a fim de prender a corrente no pescoço de Nancy.
Terminava um pouco acima da gola rendada do vestido.
— É perfeito.
— Assim como
você.
O comentário foi de Michael, que saiu do carro
nesse momento e abriu a porta para Nancy entrar. Ele ficara tão atordoado
pela aparência dela que por algum tempo fora incapaz de pensar.
— Vá para
trás, Avery. Você senta na frente, querida.
— Ela não
pode sentar no meu colo?
Ben
murmurou um débil protesto, enquanto se transferia para o banco traseiro.
Michael sacudiu-lhe o dedo.
— Não
precisa ficar nervoso, cara. Apenas pensei que por ser o padrinho podia...
— Vai
acabar virando um homem morto se não tomar mais cuidado, Avery.
O ânimo de
ambos era da mais intensa alegria, sendo as palavras pronunciadas em tom
zombeteiro. Nancy acomodou-se no banco da frente e fitou radiante o homem com
quem estava prestes a casar. Sentiu um momento de apreensão ao pensar em Marion,
mas tratou de afastar o problema de sua mente. Aquele era um momento para
pensar apenas em si mesma. E em Michael.
— Que noite
mais doida... mas estou adorando!
Alternadamente,
gracejaram e ficaram em silêncio, no caminho para a pequena cidade em que Michael estava
pensando. Chegou finalmente o momento em que nenhum dos três falou mais
qualquer coisa. Tinham uma porção de coisas em que pensar. Michael estava
recordando o encontro com a mãe, enquanto Nancy pensava em tudo o que aquele
dia representava para ela.
— Ainda falta
muito, amor?
Nancy estava
começando a ficar nervosa e o lenço da avó parecia cada vez mais amarrotado,
espremido entre as mãos.
— Faltam
apenas sete ou oito quilômetros. Estamos quase chegando... — Michael acariciou
por um momento a mão de Nancy. — Só mais alguns minutos, querida, e estaremos casados.
— Pois
então trate de acelerar, mister, antes que eu fique de pés frios — cantarolou
Ben, no banco de trás.
Michael
calcou o acelerador e entrou na curva seguinte, enquanto os três riam. Mas as
risadas rapidamente se transformaram em arquejos, enquanto Michael dava uma
guinada desesperada no volante, tentando inutilmente evitar um caminhão que
ocupava as duas pistas, avançando na direção deles, depressa demais, quase
descontrolado. O motorista devia estar meio adormecido. Nancy recordou-se depois
de ter ouvido o grito angustiado de Ben:
— Oh, não!
E sua própria
voz, ressoando em seus ouvidos. E depois houve o barulho interminável de vidro
espatifado, metal rangendo, sendo destroçado, motores se encontrando, couro e
plástico sendo rasgado, tudo se cobrindo com uma mortalha de fragmentos de
vidro. E depois, finalmente, tudo parou, o mundo ficou totalmente escuro.
Parecia que
se haviam passado muitos anos quando Ben despertou, a cabeça comprimida contra
o painel, um latejar horrível nos ouvidos. Tudo estava escuro ao seu redor e
parecia haver um punhado de areia em sua boca. Teve a sensação de que
transcorreram mais algumas horas antes que conseguisse abrir os olhos. O
esforço deixou-o terrivelmente enjoado, sentindo-se mal. A princípio, não pôde
compreender o que viu. Nada parecia fazer sentido. Depois, compreendeu que
olhava para o olho direito de Michael. Estava no banco da frente com ele, mas
tudo o que podia ver era Michael. E havia um filete de sangue escorrendo lentamente
pelo lado do rosto de Michael, continuando pelo pescoço. Era estranho ficar
observando, mas por algum tempo foi tudo o que Ben fez... observar...
Michael... sangrando... Santo Deus! Ocorreu-lhe finalmente o que estava
acontecendo. Acidente... houvera um acidente... ele e Michael estavam no carro
e... Ben levantou a cabeça e tentou divisar mais alguma coisa, mas um golpe,
que parecia de uma barra de ferro, obrigou-o a baixá-la novamente. Alguns
minutos se passaram antes que ele conseguisse recuperar o fôlego e pudesse abrir
os olhos novamente. Michael ainda estava caído no mesmo lugar, sangrando. Mas
Bem pôde agora constatar que o amigo estava respirando. Desta vez, quando ele
se mexeu, nada aconteceu. Pôde levantar a cabeça. O que viu, além de Michael,
foi o caminhão que os abalroara, à beira da estrada, capotado. O que ele não
viu foi o motorista, sob a cabina do caminhão, morto. Algum tempo se passaria
antes que alguém visse isso. E depois Ben compreendeu algo mais, que estava
vendo tudo através de janelas abertas. Não restava mais vidro intacto em
qualquer lugar do carro. O vidro estava por cima deles, espatifado em pequenos
fragmentos ao redor deles. E no lado de Michael também não havia porta. No instante
seguinte, Ben recordou-se de mais uma coisa. Havia outra pessoa no carro...
Nancy estava com eles, e para onde estavam indo?
Era muito
difícil lembrar-se das coisas, ver tudo direito. A cabeça de Ben doía
terrivelmente. Quando ele se mexeu, uma dor terrível subiu-lhe pela perna,
continuou pelo lado do corpo. Ele se mexeu para o outro lado, a fim de se
livrar da dor. E foi nesse momento que a viu. Nancy... oh, Deus... era Nancy,
numa espécie de roupa vermelha e branca, caída sobre o capô, o rosto virado
para baixo... Nancy... ela só podia estar morta... Ben já não se importava mais
com a dor em sua perna. Arrastou-se por cima do painel, aproximando-se dela.
Ele tinha de virá-la... alcançá-la... ajudá-la... Nancy... E foi então que percebeu
a poeira tênue que cobria os cabelos de Nancy. Ela estava usando o pára-brisa
por cima do vestido, sobre a nuca, sobre... Santo Deus! Com suas últimas
reservas de energia, ele a rolou lentamente para o lado.. E depois,
desoladamente, com um garotinho aterrorizado.
— Oh, Deus...
Não mais
havia qualquer rosto por baixo da touca azul de cetim ensopada de sangue. Ele
não podia dizer se Nancy estava morta ou viva. Mas, por um instante horrível,
esperou que ela estivesse morta. Porque simplesmente não existia mais nenhuma
Nancy. Não restava absolutamente mais ninguém ali, nem mesmo um remanescente
do rosto outrora bonito. E depois, misericordiosamente, entre o sangue de Nancy
e as suas próprias lágrimas, Ben desmaiou.
Capítulo
4
Ele parecia
terrivelmente pálido, com a mãe sentada ali a observá-lo. Marion Hillyard,
sentada num canto do quarto, tinha uma expressão desolada. Já estivera ali
antes, naquele quarto, naquele dia, observando aquele rosto... não realmente
aquele rosto ou aquele quarto, mas ela tinha a sensação de que nada mudara. Era
exatamente como na ocasião em
que Frederick tivera o infarto fulminante que o matara em
poucas horas. Ela ficara sentada ali, igualmente imóvel, igualmente apavorada,
igualmente sozinha. E ele acabara... Frederick... Marion sentiu novamente um
soluço subir por sua garganta e respirou fundo. Não podia chorar. Não podia
deixar-se dominar por aqueles pensamentos. O marido morrera. Michael não ia
morrer. Nada aconteceria a Michael. Ela não deixaria que coisa alguma lhe
acontecesse. Estava agora fazendo-o resistir com as últimas reservas de energia
que podia dar.
Por um
momento, ela desviou o olhar para o rosto da enfermeira. A mulher estava
observando Michael atentamente, mas não havia qualquer sinal de alarme em sua
atitude. Ele passara o dia inteiro em estado de coma, desde o acidente na noite
anterior. Marion chegara ali às cinco horas da manhã. Telefonara para um
serviço de limusine que funcionava 24 horas por dia e viera de carro de Nova
York. Mas teria vindo a pé, se fosse necessário. Nada a impediria de ficar ao
lado de Michael. Tinha de estar ali para mantê-lo vivo. Michael era agora tudo
o que ela tinha. Michael e a firma... e a firma era para ele. Fizera tudo para
Michael... isto é, nem tudo por ele, mas a maior parte. Era o maior presente
que podia dar ao filho. O presente do poder, do sucesso. Michael não podia
jogar tudo fora por causa daquela sem-vergonha... assim como não podia perder
tudo morrendo. Oh, Deus! Era tudo culpa dela, daquela maldita mulher. Ela
provavelmente persuadira Michael a fazer aquilo. Ela...
A enfermeira
levantou-se abruptamente e puxou as pálpebras de Michael. Marion ficou tensa e
esqueceu tudo o que estava pensando. Ela também se levantou, silenciosamente,
indo postar-se ao lado da enfermeira. O que quer que houvesse para ver, ela
queria ver. Mas não havia nada. Nenhuma mudança. A mulher inexpressiva de
branco pegou o pulso de Michael por um momento e depois formou com a boca as
mesmas palavras de sempre:
—
Continua na mesma.
Ela fez um
gesto na direção do corredor e Marion seguiu-a para fora do quarto. Desta vez,
a preocupação da enfermeira não era com Michael, mas sim com a mãe.
— O Dr.
Wickfield pediu-me que lhe dissesse que devia sair às cinco horas, Sra.
Hillyard. E, infelizmente...
Ela
olhou ameaçadoramente para o relógio e depois sorriu, como se pedisse desculpas.
Eram 5h15min. Marion estava ao lado de Michael há exatamente 12 horas. Ficara
sentada ali durante o dia inteiro, ininterruptamente, com apenas duas xícaras
de café para se manter. Mas não estava cansada, não estava com fome, não estava
coisa alguma. E não ia embora.
— Obrigada
pela gentileza. Vou andar um pouco pelo corredor e depois voltarei.
Ela não
ia deixar Michael. Nunca mais. Deixara Frederick. Apenas por uma hora, para
jantar. Haviam insistido que ela comesse alguma coisa e fora nessa ocasião que Frederick
morrera. Morrera enquanto ela estava ausente. O que não ia acontecer desta vez.
Ela sabia que Michael não morreria enquanto estivesse sentada ali no quarto. As
lesões haviam sido principalmente internas, mas o próprio Wickfield achava que
Michael poderia em breve emergir do estado de coma. De qualquer forma, Marion
não estava disposta a correr qualquer risco. Haviam também pensado que
Frederick iria em breve se recuperar. Havia agora lágrimas nos olhos dela,
enquanto ficava parada ali, os olhos vazios fixados na parede azul-clara por
trás da enfermeira.
— Sra.
Hillyard? — A mulher tocou-lhe gentilmente o braço e Marion estremeceu. — Deve
descansar um pouco. O Dr. Wickfield reservou-lhe um quarto no terceiro andar.
—
Não há necessidade.
Marion
sorriu inexpressivamente para a enfermeira e afastou-se pelo corredor. O sol
ainda brilhava na janela na extremidade do corredor. Ela se sentou
cuidadosamente no peitoril da janela, para fumar o seu primeiro cigarro em
horas e contemplar o sol se pôr atrás de uma igreja branca naquela agradável
cidadezinha da Nova Inglaterra. Graças a Deus que a cidade apenas parecia
remota, quando na verdade estava a menos de uma hora de carro de Boston. Não
houvera a menor dificuldade em trazer os melhores médicos para examinarem
Michael. Assim que estivesse em condições Michael seria transferido para um
hospital em Nova York.
Até lá, ela sabia que, pelo menos, o filho estaria em boas
mãos. Em termos médicos, fora Michael quem mais sofrera. O rapaz Avery saíra
bastante machucado do acidente, mas estava desperto e vivo. O pai levara-o de
ambulância para Boston, naquela tarde. Ele quebrara um braço, uma perna, um pé
e uma clavícula, mas iria recuperar-se inteiramente. E, a moça... ora, tudo
fora culpa dela, não havia razão para que devesse... Marion apagou o cigarro
com um movimento vigoroso do pé. A moça também ficaria boa. Isto é, pelo menos
viveria. A única coisa que ela perdera havia sido o rosto. E talvez tivesse
sido até melhor assim. Por uma fração de segundo, Marion quis combater a raiva
que sentia, desejou sentir pena da moça... para o caso de toda aquela baboseira
sobre caridade cristã ser verdadeira, para o caso de seus sentimentos fazerem
alguma diferença para Michael... e pela possibilidade de haver um Deus que pudesse
puni-la. Mas não conseguiu. Odiava a moça até o fundo de seu coração.
— Pensei ter deixado ordens para que fosse
descansar um pouco.
Marion
virou-se na direção da voz, com um sobressalto. Sorriu, cansada, ao deparar com
o seu Dr. Wickfield. Wicky.
— Será que
nunca acata o que os outros dizem, Marion?
— Não, se
puder evitá-lo. Como está Michael?
Ela estava
com o cenho franzido, enquanto pegava outro cigarro.
— Acabei de
dar uma olhada. Ele continua estável. Já lhe disse que ele vai sair do estado
de coma, mas é preciso dar-lhe algum tempo. Todo o seu organismo recebeu um
tremendo choque.
— Foi o
que também aconteceu comigo, quando recebi a notícia. — O médico assentiu, com
uma expressão compreensiva. — Tem certeza de que não haverá lesões permanentes?
— Marion fez uma breve pausa, antes de acrescentar as palavras terríveis: — Lesões
cerebrais?
Wickfield
afagou-lhe o braço e sentou-se a seu lado no peitoril da janela. Por trás
deles, a cidadezinha era um cenário digno de um cartão-postal.
— Já lhe
falei tudo, Marion. Na medida em que podemos prever, ele ficará inteiramente
bom. Mas é claro que muito vai depender do tempo em que permanecer em estado de
choque. Mas posso afirmar-lhe que ainda não estou assustado.
— Mas eu
estou.
Eram três
palavras bem pequenas na boca de uma mulher muito forte. Surpreenderam o seu
médico, que a fitou atentamente. Havia facetas de Marion Hillyard de que
ninguém jamais suspeitava.
— Como está a
moça? — indagou ela.
Agora
ela era novamente a Marion que Wickfield sempre conhecera, os olhos estreitados
por trás da fumaça do cigarro, o rosto duro, o medo dissipado.
— Não há
muita coisa que possa mudar para ela. Ou pelo menos não por enquanto. O estado
dela permaneceu estável durante o dia inteiro, mas não há absolutamente nada
que possamos fazer por ela. Por um lado, porque ainda é muito cedo; por outro,
porque só existem dois homens em todo o país que podem cuidar desse tipo de
reconstrução total. Não restou absolutamente nada no rosto dela, nem um único
osso intacto, nervo ou músculo. Somente os olhos é que não foram totalmente
destruidos.
— Melhor
assim, porque dessa forma ela poderá contemplar a si mesma.
O Dr.
Wickfield teve um sobressalto com o tom de voz de Marion.
— Michael
é que estava dirigindo, Marion. Não era ela.
Mas
Marion limitou-se a assentir em resposta. Não havia sentido em insistir no
assunto com Wickfield. Ela sabia de quem era a culpa. Era toda da moça.
— O que
acontece com alguém nesse estado, se o trabalho de reconstrução não for feito?
Ela viverá?
— Infelizmente,
sim. Mas levará uma vida trágica. Não se pode pegar uma moça de 20 anos e
transformá-la num horror desse tipo esperando que se ajuste. Ninguém pode
ajustar-se. Ela era... bonita antes do acidente?
— Acho
que era. Mas não sei com certeza. Nunca nos encontramos.
A voz de
Marion era dura como rocha, assim como os olhos.
— Entendo.
Seja como for, ela vai enfrentar uma terrível realidade. Farão tudo o que for
possível aqui no hospital, assim que ela melhorar um pouco. Mas não poderá ser
muita coisa. Ela por acaso tem dinheiro?
— Nenhum.
Marion
pronunciou a palavra como se fosse uma sentença de morte. Era a pior coisa que
podia dizer a respeito de qualquer pessoa.
— Então
ela não tem muitas opções. Infelizmente, os homens que fazem esse tipo de
trabalho não são de fazer caridade.
— Já
pensou em alguém em particular?
— Conheço
alguns nomes. Dois, para ser mais exato. O melhor está em São Francisco. — Um
pequeno fogo ateou-se no coração do Dr. Wickfield. Com todo o seu dinheiro,
Marion Hil1yard podia... se ao menos... — O nome dele é Peter Gregson. Nós nos
conhecemos há alguns anos. É realmente um homem extraordinário.
—
Ele seria capaz de fazer um trabalho desses?
Wickfield
sentiu um impulso de admiração pela mulher. Sentiu vontade de abraçá-la, mas
não se atreveu. .
— É bem
possível que ele seja o único homem capaz de fazê-lo. Devo... quer que eu entre
em contato com ele?
Ele hesitou
em dizer as palavras. Marion fitou-o com seus olhos frios e calculistas e
Wickfield ficou sem saber o que ela estava pensando. A onda de admiração quase
se transformou em medo.
— Eu lhe
direi quando chegar o momento.
— Está certo. — Wickfield olhou para o relógio
e depois se levantou. — Gostaria que descesse agora e descansasse um pouco.
Estou falando sério.
— Sei disso. —
Marion presenteou-o com um sorriso frio. — Mas acontece que não vou descansar.
E você sabe disso também. Tenho de ficar ao lado de Michael.
— Mesmo
que se matasse fazendo isso?
— Não
vou me matar. Sou ruim demais para morrer, Wicky. Além disso, ainda tenho muito
trabalho a fazer.
— E vale
a pena?
Wickfield
fitou-a com curiosidade por um momento. Se tivesse um décimo da ambição dela,
teria sido um grande cirurgião. Mas não tinha e por isso não era. E nem mesmo
tinha certeza se a invejava.
— E vale a
pena?
Na segunda vez,
ele falou mais suavemente. Marion assentiu.
— Claro que
vale. Jamais duvide disso, por um segundo sequer. Tem-me dado tudo o que quero
da vida.
A menos
que eu perca Michael. Marion fechou os olhos, tratando de afastar o pensamento
da mente.
— Muito bem, vou deixá-la mais uma hora com
Michael e depois voltarei para cá. E vou obrigá-la a descansar nem que tenha de
aplicar-lhe Nembutal e arrastá-la pessoalmente para fora do quarto. Entendido?
— Está certo.
— Marion levantou-se, deixou cair o outro cigarro no chão, esmagou-o com o pé,
afagou o rosto dele ligeiramente. — E Wicky... — Ela o fitou sob as pestanas
castanhas compridas. Por um momento, era toda suavidade e beleza castanha. — ...
obrigada.
Ele a
beijou gentilmente no rosto, apertou-lhe o braço e depois recuou por um
momento.
— Ele
vai ficar bom, Marion. Você vai ver.
Ele não se
atreveu a mencionar a moça novamente. Poderiam voltar a falar sobre isso mais
tarde. Limitou-se a sorrir e afastou-se, enquanto Marion continuava parada no
mesmo lugar, parecendo vulnerável e solitária. Wickfield sentiu-se contente
por ter se lembrado de telefonar para George Calloway, poucas horas antes.
Marion precisava de alguém a seu lado. Wickfield não parou de pensar nela
enquanto avançava pelo corredor. Marion ficou parada, observando-o afastar-se.
Só depois que ele sumiu é que ela começou a avançar pelo corredor, um vulto
solitário, a caminho do quarto de Michael, passando por portas abertas e
fechadas, por desesperos que estavam para chegar e esperanças que jamais se
concretizariam. E umas poucas que sobreviveriam. Aquele andar estava reservado
para os doentes em estado crítico e não saía qualquer ruído dos quartos pelos
quais ela passava, lentamente. Já estava na metade do corredor quando ouviu
soluços convulsivos saindo por uma porta aberta. Os sons eram tão baixos que a
princípio Marion não teve certeza se estava mesmo ouvindo alguma coisa. E foi
então que viu o número do quarto e compreendeu tudo. Estacou abruptamente, como
se tivesse esbarrado numa parede invisível. Olhou para a porta e para a
escuridão além.
Podia avistar
a cama no canto, os contornos meio indefinidos. Mas o quarto estava às escuras.
Todas as persianas e cortinas estavam fechadas, como se a paciente não pudesse
ser atingida pela luz. Marion ficou parada ali por um longo tempo, com receio
de entrar no quarto, mas sabendo que tinha de fazê-lo. Lentamente, um pé depois
do outro, suavemente, quase deslizando, ela avançou um pouco pelo quarto. E
parou novamente. Os soluços eram um pouco mais altos agora e soando a
intervalos mais rápidos, com ligeiros arquejos de pânico.
— Há alguém
aí?
Toda a cabeça
da jovem estava envolta por ataduras e a voz soava abafada e estranha.
— Há
alguém aí? — A voz tornou-se um pouco mais alta. — Não posso ver.
— Seus olhos
estão apenas cobertos por ataduras. Não há nada de errado com seus olhos. — Mais
tais palavras foram recebidas por novos soluços. — Por que está acordada?
Marion
falava num tom impassível. Não eram palavras visando a tranqüilizar, mas sim
palavras inteiramente destituídas de toda e qualquer emoção. A própria Marion
tinha a sensação de que estava falando num sonho. Mas sabia que tinha de estar
ali. Não havia outro jeito. Pelo bem de
Michael.
— Não lhe
deram nada para dormir?
— Não
funciona. Continuo acordando a todo instante.
— A dor é
terrível demais?
— Não. Sinto
o corpo todo dormente. Quem... quem é você?
Marion ficou
com medo de dizer. Em vez disso, aproximou-se da cama e sentou-se na cadeira
azul estreita que alguma enfermeira devia ter deixado ali. As mãos da moça
também estavam envoltas em ataduras e pediam nos lados, inúteis. Marion
recordou-se de que Wicky lhe dissera que a moça naturalmente usara as mãos para
proteger o rosto. As lesões nas mãos eram tão grandes quanto no rosto, o que
seria terrível para ela, por ser uma pintora. Em suma, toda a vida daquela moça
estava praticamente liquidada. A juventude, a beleza, o trabalho. E o seu
romance. Mas agora Marion sabia o que tinha de dizer.
— Nancy... — era
a primeira vez que ela pronunciava o nome, mas agora isso não tinha
importância. Não havia alternativa. — Eles...
Marion fez
uma pausa. Sentada ali, ao lado da jovem mutilada, sua voz era suave e
insinuante.
Houve um
silêncio total no quarto por um tempo interminável. Depois, um pequeno soluço
angustiado emergiu do meio das ataduras.
— Já lhe
falaram sobre o terrível estado em que seu rosto ficou?
Marion sentiu
o estômago revirar-se ao pronunciar tais palavras, mas não podia parar agora.
Tinha de libertar Michael. Se o libertasse, ele viveria. Ela podia sentir isso
no fundo de si mesma.
— Já lhe
contaram como seria impossível reconstituí-lo com perfeição?
Os soluços
eram agora furiosos.
— Mentiram
para mim! Disseram...
— Só há um
homem que pode realizar o trabalho com perfeição, Nancy. E custaria centenas de
milhares de dólares. Não tem condições de pagar. Nem Michael.
— Eu jamais
permitiria que Michael pagasse! — Ela estava agora furiosa com a voz, assim
como se revoltava contra o destino. — Nunca permitiria...
— E o que vai
fazer então?
Os soluços recomeçaram
—
Poderia enfrentá-lo desse jeito?
Demorou
alguns minutos para que o “não” sufocado saísse do meio das ataduras.
—
Acha que ele iria amá-la desse jeito? Mesmo que ele tentasse, por sentir algum
vinculo de lealdade, alguma obrigação, quanto tempo acha que poderia durar? Quanto
tempo você suportaria saber sua aparência e o que está fazendo com ele?
Os
sons que Nancy emitia agora eram assustadores. Ela dava a impressão de que
estava passando muito mal e Marion perguntou-se qual teria sido sua reação
naquelas circunstâncias.
—
Não restou nada de você, Nancy. Absolutamente nada. Nada restou da vida que
você tinha antes deste dia.
As duas permaneceram num silêncio
interminável. Marion tinha a impressão de que iria ouvir aqueles soluços para
sempre. Mas tinha que ser doloroso, caso contrário não daria certo.
— Já o perdeu, Nancy. Não pode fazer uma coisa
dessas com ele. E ele... ele merece muito mais do que isso. Se o ama, sabe
disso. E... e você também merece. Mas pode ter uma vida nova, Nancy.
A moça nem
mesmo se deu ao trabalho de responder, continuando a soluçar.
— Pode ter uma vida nova, Nancy. Um mundo
inteiramente novo. — Marion esperou, até que os soluços se tornaram novamente
furiosos e depois cessaram. — Um rosto inteiramente novo, Nancy.
— Como?
— Há um homem
em São Francisco
que pode torná-la bonita novamente. Que pode fazê-la capaz de pintar outra vez.
Levaria muito tempo, um dinheiro incalculável. Mas valeria a pena, Nancy...
não acha?
Havia agora
um sorriso incipiente nos cantos da boca de Marion. Estava em terreno
familiar. Era como fazer uma transação de muitos milhões de dólares. Uma
transação de 100 milhões de dólares. No final, era tudo a mesma coisa.
Um
pequeno suspiro entrecortado emergiu das ataduras.
—
Nós não temos condições para um tratamento desses.
Marion
quase estremeceu ao ouvir o "nós". Não eram mais um "nós".
Nunca haviam sido. Ela, Marion, e Michael é que eram o "nós". Não
aquela... aquela... Marion respirou fundo, tratando de recuperar o controle.
Tinha um trabalho a fazer. Era a única maneira pela qual podia pensar sobre o
caso. Não podia pensar na moça. Apenas em Michael.
— Vocês
não podem, Nancy. Mas eu posso. Sabe agora quem eu sou, não é mesmo?
— Sei.
— Pode
compreender que já perdeu Michael? Que ele não pode sobreviver à pressão e
tragédia do que lhe aconteceu, se é que conseguirá escapar com vida do
acidente? Pode compreender isso, não é mesmo?
— Posso.
— E sabe
que seria uma iniqüidade tentar submetê-lo a essa provação, fazê-lo demonstrar
a sua lealdade para com você?
Marion não
queria dizer a palavra "amor". Aquela moça não era digna de tanto. E
isso era algo em que Marion
tinha de acreditar de qualquer maneira.
— Pode
compreender isso, Nancy? — Houve um momento ele silêncio. — Pode, Nancy?
Desta
vez, a resposta foi uma palavra, desesperada, exausta, desolada:
— Posso.
— O que
significa que já perdeu tudo o que podia perder, não é mesmo?
— É,
sim.
Novamente
a voz soava destituída de inflexão, sem qualquer vida. Era como se a própria
vida estivesse se escoando da moça.
— Nancy,
eu gostaria de lhe propor um pequeno acordo.
Era
Marion Hillyard no melhor de sua classe. Se o filho pudesse ouvi-la naquele
momento, sentiria vontade de matá-la.
— Gostaria
que pensasse sobre aquele rosto novo. Sobre uma nova vida, uma nova Nancy.
Pense nisso. Sobre o que poderia representar. Seria bonita novamente, poderia
outra vez ter amigos, poderia ir a lugares... restaurantes, cinemas, lojas...
poderia vestir roupas bonitas e sair com homens. A alternativa... as pessoas se
encolhendo e recuando quando você se aproximar. Não poderia ir a lugar nenhum,
não poderia fazer coisa alguma, não seria ninguém. As crianças chorariam se a
vissem. Pode imaginar o que seria viver assim? Mas tem uma opção.
Marion
parou de falar, dando tempo para que a moça absorvesse suas palavras.
— Não,
não tenho.
— Tem,
sim. Quero dar-lhe essa opção. Eu lhe darei essa nova vida. Um novo rosto, um
novo mundo. Um apartamento em outra cidade, enquanto o trabalho estiver sendo
realizado... qualquer coisa que precisar, qualquer coisa que quiser. Não haverá qualquer dificuldade. Dentro de um
ano mais ou menos, Nancy, o pesadelo estará terminado.
— E depois?
— Você estará
livre. A. nova vida lhe pertencerá.
Houve
uma pausa interminável, enquanto Marion se preparava para desfechar o golpe de
misericórdia que Nancy estava esperando.
— Contanto
que você nunca mais volte a entrar em contato com Michael. O novo rosto será
seu somente se renunciar a Michael. Mas se não aceitar... meu presente, sabe
que de qualquer maneira já o perdeu. Assim, por que viver o resto de sua vida
como uma aberração, se não tem necessidade?
— E, se
Michael não quiser respeitar o acordo? E se eu me afastar dele, mas Michael não
quiser ficar longe de mim?
— Tudo o
que quero de você é a promessa de que ficará longe dele. O que Michael quiser
fazer é problema dele.
— E você
vai respeitar isso? Se Michael me quiser... se vier atrás de mim... então é
tudo com ele?
—
Respeitarei isso.
Deitada ali,
Nancy sentiu-se vitoriosa. Conhecia Michael infinitamente melhor que a mãe
dele. Michael jamais renunciaria a ela. Acabaria por encontrá-la e insistiria
em ajudá-la a superar a provação. A esta altura, ela já estaria a caminho de se
tomar a mesma Nancy de antes. A mãe dele não poderia vencer, por mais que tentasse.
Aceitando o acordo, Nancy estaria de certa forma trapaceando, pois já sabia
qual seria o resultado. Mas tinha de aceitar. Não havia alternativa.
— Vai
aceitar?
Marion quase
perdeu a respiração, enquanto esperava pela palavra por que estava rezando, a palavra
que libertaria Michael. E finalmente essa palavra chegou.
Mas seria uma
palavra de vitória, não de derrota. Estaria impregnada com toda a fé que Nancy
depositava em Michael.
Ela se recordou das palavras que Michael lhe dissera na
praia, na manhã anterior, ao esconderem as contas: "Prometo nunca dizer
adeus". Ela sabia que ele jamais o faria.
— Qual é a
sua resposta, Nancy?
Marion não
podia esperar por mais tempo. O coração dela não suportaria.
— Sim.