domingo, 24 de março de 2013

O segredo de uma promessa



O Segredo de uma Promessa

Baseado no roteiro de
Garry Michael White

Danielle Steel


Tradução de
A.B. PINHEIRO DE LEMOS


14ª EDIÇÃO

Editora Record
RIO DE JANEIRO - SÃO PAULO
2006

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
                        Steel, Danielle
S826s              O segredo de uma promessa / Danielle Steel;          tradução de A.B. Pinheiro de Lemos. - 14ª ed. - Rio de
            Janeiro: Record, 2006.

                        Tradução de: The promise
                        "Baseado no roteiro de Garry Michael White"
                        ISBN 85-01-01564-4

                        1. Romance norte-americano. I. White, Garry Michael.
            II. Lemos, A.B. Pinheiro de (Alfredo Barcelos Pinheiro
            de), 1938- .III. Título.
                                                                       CDD-813
93-0202                                                         CDU - 820(73)-3

Título original norte-americano: THE PROMISE

Um romance de DANIELLE STEEL
Baseado no roteiro de GARRY MICHAEL WHITE

Copyright © 1978 by MCA Publishing, uma divisão de MCA, Inc.
Direitos no Brasil adquiridos pela Distribuidora Record

Capítulo 1

O sol do começo da manhã incidia em suas costas quando pegaram as bicicletas diante da Heliot House, no campus de Harvard. Pararam por um momento, a fim de sorrirem um para o outro. Era maio e os dois eram muito jovens. Os cabelos curtos da moça brilhavam ao sol. Os olhos dela encontraram os dele, no momento em que começou a rir.
— E então, Doutor em Arquitetura, como se sente?
— Pergunte-me isso dentro de duas semanas, depois que eu conseguir o doutorado.
O rapaz sorriu para ela, sacudindo da testa uma mecha de cabelos louros.
— Seu diploma que se dane! Estava me referindo à noite de ontem!
Ela sorriu novamente. O rapaz deu-lhe uma palmada no traseiro.
— Ahn... E você, como se sente, Srta. McAllister? Ainda pode andar?
Os dois estavam passando a perna por cima das bicicletas e a moça fitou-o com uma expressão zombeteira.
— E você pode?
E com isso partiu, distanciando-se rapidamente na pequena bicicleta que ele lhe dera de presente no aniversário, poucos meses antes. Ele estava apaixonado pela moça. Sempre estivera apaixonado por ela. Sonhara com ela por toda a sua vida. E a conhecia há dois anos.
Fora um tempo solitário que ele tivera em Harvard antes disso. Já no segundo ano do curso de doutorado estava resignado a continuar assim. Não queria o que os outros desejavam. Não queria uma jovem de Radcliffe, Vassar ou Wellesley na cama a seu lado. Para Michael, havia sempre algo que faltava. Queria algo mais. Estrutura, substância, alma. Resolvera o problema temporariamente no verão anterior, tendo um caso com uma amiga de sua mãe. A mãe nada soubera, é claro. E fora extremamente divertido e satisfatório. Era uma mulher muito atraente, de trinta e tantos anos, bem mais moça que a mãe, é claro. E era uma editora da Vogue. Mas fora simplesmente um passatempo agradável. Para ambos. Com Nancy, porém, era diferente.
Ele o compreendera desde o primeiro momento em que a vira, na galeria de Boston que estava expondo os quadros dela. Havia uma solidão obcecante nas paisagens rurais, uma ternura solitária nas pessoas retratadas. Michael sentiu-se dominado por uma profunda compaixão, com vontade de consolar aquelas pessoas e a mulher que as pintara. Ela estava na galeria naquele dia, com uma boina vermelha e um velho casaco de pele de guaxinim, a pele delicada ainda luzindo da caminhada até a Charles Street, com os olhos brilhando, o rosto cheio de vida. Michael jamais desejara outra mulher tanto quanto a desejara. Comprara dois quadros e a levara para jantar no Lockober´s. Mas o resto levara muito mais tempo. Nancy McAllister não era uma mulher propensa a ceder prontamente seu corpo ou seu coração. Fora solitária demais por tempo demais para se entregar facilmente. Aos 19 anos, já era uma mulher sábia e calejada na dor. A dor de estar só. A dor de ser abandonada. Era o que a atormentava desde que fora colocada num orfanato, ainda bem pequena. Não podia mais recordar o dia em que a mãe a deixara no orfanato, pouco antes de morrer. Mas lembrava-se nitidamente do frio horrível dos salões. Do cheiro das pessoas estranhas. Dos sons pela manhã, enquanto, deitada na cama, lutava para conter as lágrimas. Iria recordar-se dessas coisas pelo resto de sua vida. Por muito tempo, pensara que nada poderia preencher o vazio que havia dentro de si. Mas agora tinha Michael.
O relacionamento entre eles nem sempre fora fácil. Mas era um relacionamento muito forte, baseado no amor e no respeito. Haviam fundido os mundos de cada um e disso resultara algo belo e raro. E Michael também não era nenhum tolo. Conhecia os perigos de se apaixonar por alguém "diferente", como sua mãe insistia em ressaltar... sempre que tinha oportunidade. Mas não havia nada de "diferente" em Nancy. A única coisa diferente era o fato de que ela era uma artista, não uma simples estudante. Nancy não estava mais na fase de procura, já era o que desejava. E ao contrário das outras mulheres que Michael conhecia, ela não estava experimentando candidatos, mas simplesmente esco­lhera o homem a quem amava. Em dois anos, Michael jamais a desapontara. E ela tinha certeza de que isso jamais aconteceria. Afinal, conheciam-se muito bem. O que poderia haver que ela já não soubesse? Sabia de tudo. As coisas engraçadas, os segredos tolos, os sonhos da infância, os medos desesperados. E, através dele, Nancy passara a respeitar sua família. Até mesmo a mãe.
Michael nascera na tradição, condicionado desde a infância a herdar um trono. Não era algo que ele encarasse com levian­dade. Nem mesmo gracejava a respeito. Havias ocasiões em que isso chegava até a assustá-lo. Teria capacidade de se mostrar à altura do mito? Mas Nancy não tinha a menor dúvida quanto a isso. O avô de Michael, Richard Cotter, fora um arquiteto. O pai dele também. Fora o avô que fundara um império. Mas havia sido a fusão do império Cotter com a fortuna Hillyard, através do casamento dos pais de Michel, que criara o império Cotter­-Hillyard de hoje. Richard Cotter soubera como ganhar dinheiro, mas fora o dinheiro Hillyard, um dinheiro antigo, tradicional, que proporcionara os rituais e tradições do poder. Havia ocasiões em que era um manto incômodo de se usar, mas não se podia dizer que Michael não gostasse. E Nancy também o respeitava. Ela sabia que Michael estaria um dia no comando do império Cotter-Hillyard. No princípio, haviam conversado a respeito incessantemente. Mais tarde, voltaram a conversar constantemente, quando compreenderam como era profunda e séria a ligação que os unia. Mas Michael sabia que encontrara uma mulher que podia assumir tudo, tanto as responsabilidades de família quanto as fun­ções nos negócios. O orfanato nada fizera a fim de preparar Nancy para o papel que Michael sabia que ela iria desempenhar, mas a base parecia estar fixada na própria alma dela.
Michael contemplava-a agora com um orgulho quase insu­portável, enquanto ela se distanciava a sua frente, segura de si, forte, as pernas ágeis pedalando vigorosamente, virando a cabeça para trás de vez em quando a fim de fitá-lo e rir. A vontade de Michael era aumentar a velocidade e alcançá-la... tirá-la da bi­cicleta... ali... na grama... da maneira como tinham feito na noite anterior... da maneira... Ele tratou de afastar o pensa­mento de sua mente e disparou atrás dela.
— Ei, espere por mim, sua bruxinha!
Michael estava emparelhado com ela um momento depois. Continuaram a pedalar, agora um pouco mais devagar. Michael estendeu a mão pelo curto espaço que os separava.
— Está linda hoje, Nancy. — A voz dele era uma carícia no ar da primavera. Ao redor deles, o mundo era verde e viçoso. — Sabe quanto a amo?
— Não seria a metade do que o amo, Sr. Hillyard?
— Isso demonstra o quanto sabe, Srta. Nancy Calçalinda!
Ela riu, como sempre fazia, ao ouvir o apelido. Michael sem­pre a fazia feliz. Ele fazia coisas maravilhosas. Nancy sempre pensara assim desde o primeiro momento, quando ele entrara na galeria e ameaçara tirar as próprias roupas, todas, se ela não lhe vendesse todos os quadros.
— Acontece que a amo pelo menos sete vezes mais do que me ama.
— Essa não! — Nancy sorriu-lhe novamente, nariz no ar e disparou à frente outra vez. — Eu o amo muito mais, Michael.
— Como sabe?
Ele estava acelerando para alcançá-la.
— Papai Noel me contou.
E com isso, Nancy se distanciou novamente. Desta vez, Michael deixou-a ir na frente pelo, caminho estreito. Estavam num animo festivo e ele gostava de contemplá-la. A forma esguia dos quadris na calça de jeans, a cintura fina, os ombros impecáveis com a suéter vermelha amarrada frouxamente e o balanço mara­vilhoso dos cabelos pretos. Michael podia contemplá-la por anos a fio. Na verdade, era justamente isso o que estava planejando fazer. O que o fazia lembrar... tinha planejado conversar com ela a respeito naquela manhã. Diminuiu novamente a distância que os separava e bateu no ombro de Nancy gentilmente.
— Com licença, Sra. Hillyard.
Ela teve um sobressalto ao ouvir as palavras, depois sorriu timidamente, o sol incidindo em seu rosto. Michael podia ver as sardas no rosto dela, quase como poeira de ouro deixada por duendes na superfície cremosa da pele.
— Eu disse... Sra. Hillyard...
Michael pronunciou as palavras com infinito prazer. Tinha esperado por dois anos.
— Não está querendo precipitar um pouco as coisas, Mi­chael?
Ela parecia hesitante, quase temerosa. Michael ainda não fa­lara com Marion. E enquanto isso não acontecesse, não importava o que ele e Nancy pudessem ter acertado entre si.
— Não acho que esteja precipitando coisa alguma. E já tem duas semanas que estou pensando em fazer isso. Logo depois da formatura.
Há muito que haviam combinado um casamento pequeno, íntimo. Nancy não tinha família e Michael queria partilhar o momento com ela, não com um elenco de milhares de pessoas ou um exército de fotógrafos da sociedade.
 — Para dizer a verdade, estava planejando seguir esta noite para Nova York a fim de conversar com Marion.
— Esta noite?
Havia um eco de medo na voz de Nancy. Ela deixou que a bicicleta fosse diminuindo a velocidade lentamente, até parar. Michael assentiu em resposta. Nancy estava cada vez mais pen­sativa, enquanto contemplava as colinas luxuriantes ao redor.
— O que acha que ela vai dizer?
Nancy estava com medo de olhar para Michael. Com medo de ouvir a resposta.
Sim, é claro. Está mesmo preocupada com isso?
Era uma pergunta sem sentido e ambos sabiam disso. Tinham muito com que se preocupar. Marion não era uma mera dama de honra. Era a mãe de Michael e tinha toda a ternura do Titanic. Era uma mulher de força, determinação, concreto e aço. Havia assumido os empreendimentos da família com a morte do pai e voltara a fazê-lo, com renovada determinação, depois que o marido morrera. Nada podia deter Marion Hillyard. Absoluta­mente nada. Certamente não uma garota esguia ou seu filho único. Se não queria que os dois casassem, nada a faria dizer aquele "sim", embora Michael simulasse não ter a menor dúvida a res­peito. E Nancy sabia exatamente o que Marion Hillyard pensava dela.
Marion jamais tentara esconder seus sentimentos. Ou pelo menos não o fizera a partir do momento em que chegara à con­clusão de que o "caso" de Michael com "aquela artista" podia ser algo sério. Chamara Michael a Nova York e o lisonjeara, persuadira e seduzira, para depois brigar, ameaçar e pressionar. E finalmente se resignara. Ou pelo menos dera tal impressão. Mi­chael encarara essa posição como um indício encorajador, mas Nancy não tinha tanta certeza assim. Tinha a impressão de que Marion sabia o que estava fazendo e decidira, por enquanto, igno­rar a "situação". Não foram feitos convites, não foram formu­ladas acusações, nunca foram apresentadas desculpas por coisas ditas a Michael no passado. Mas também não surgiram novos pro­blemas. Para ela, Nancy simplesmente não existia. E, estranha­mente, Nancy sempre se surpreendia ao descobrir como isso a magoava. Não tendo família, ela sempre acalentara sonhos estra­nhos em relação a Marion. Que podiam ser amigas, que Marion gostaria dela, que ela e Marion iriam fazer compras para Mi­chael... que Marion seria... a mãe que ela não tivera ou conhecera. Mas Marion não se enquadrava facilmente nesse papel. Em dois anos, Nancy tivera muitas oportunidades para compreender isso. Somente Michael se apegava obstinadamente à posição de que a mãe acabaria por ceder, que as duas se tornariam gran­des amigas, a partir do momento em que Marion aceitasse o ine­vitável. Mas Nancy nunca tivera tal certeza. Ela chegara mesmo a forçar Michael a discutir a possibilidade de Marion nunca acei­tá-la, jamais concordar com o casamento. O que fariam então?
— Nesse caso, pegamos o carro e seguimos para o juiz de paz mais próximo. Afinal, já somos ambos maiores de idade.
Nancy sorrira com a simplicidade daquela solução. Sabia que nunca poderia ser tão fácil assim. Mas que diferença fazia? De­pois de dois anos juntos, eles já se sentiam de qualquer forma casados.
Ficaram parados em silêncio por um longo momento, contemplando a paisagem. Depois, Michael pegou a mão de Nancy e murmurou:
— Eu a amo, querida..
— Também o amo.
Nancy fitou-o com expressão preocupada e Michael silenciou os olhos dela com um beijo. Mas nada podia sufocar as dúvidas que ambos tinham. Isto é, nada exceto a conversa com Marion. Nancy deixou a bicicleta cair e com um suspiro aconchegou-se lentamente entre os braços de Michael.
— Gostaria que fosse tudo mais fácil, Michael.
— E será. Vai ver só. E agora vamos adiante. Vamos dar um passeio ou ficamos parados aqui o dia inteiro?
Michael deu-lhe novamente uma palmada no traseiro. Nancy sorriu, enquanto ele pegava a bicicleta dela. E no momento se­guinte estavam de novo pedalando, rindo, brincando, cantando, fingindo que Marion não existia. Só que ela existia. Sempre exis­tiria. Marion era mais uma instituição do que uma mulher. Marion era eterna. Pelo menos na vida de Michael. E agora na vida de Nancy.
O sol subiu mais alto pelo céu enquanto eles pedalavam pelos campos, alternadamente adiantando-se um ao outro ou ficando emparelhados, em um momento gracejando exuberantemente, no outro ficando silenciosos e pensativos. Já era quase meio-dia quando alcançaram a Revere Beach e avistaram o rosto fami1iar vindo em sua direção. Era Ben Avery, com uma nova garota a seu lado. Outra loura de pernas compridas. Todas pareciam rainhas colegiais. E muitas eram mesmo.
— Oi, vocês dois! Estão indo para a feira?
Ben sorriu-lhes e depois, com um gesto vago da mão, apresentou Jeannette. Trocaram cumprimentos. Nancy protegeu os olhos com a mão e olhou na direção da feira. Ainda faltavam alguns quarteirões para alcançá-la.
— Vale a pena parar?
— E como vale! Ganhamos um cachorro rosa... — Ben apontou para a criatura pequena e horrenda na cesta de Jeannette — uma tartaruga verde que deu um jeito de se perder, e duas latas de cerveja. Além do mais, eles têm um milho cozido que está sensacional.
— Acaba de me convencer. — Michael olhou para Nancy e sorriu. — Vamos até lá?
— Claro. Vocês já estão voltando?
Mas Nancy podia ver claramente que estavam. Ben tinha um brilho reconhecível nos olhos e Jeannette parecia estar de pleno acordo. Nancy sorriu para si mesma ao observá-los.
— Já, sim. Estamos andando desde as seis horas desta manhã. Estou exausto. Por falar nisso o que vocês vão fazer no jantar esta noite? Não querem visitar-me para uma pizza?
O quarto de Ben ficava próximo do quarto de Michael.
— O que vamos fazer no jantar esta noite, señor?
Nancy olhou para Michael , com um sorriso brejeiro. Mas ele estava sacudindo a cabeça.
— Tenho de resolver alguns problemas essa noite. Vamos deixar para outra ocasião.
Era um rápido lembrete do encontro com Marion.
— Está certo. Até mais tarde.
Ben e Jeannette acenaram e depois se afastaram, enquanto Nancy olhava para Michael.
— Vai mesmo procurá-la esta noite?
— Vou, sim. E pare de se preocupar com isso. Tudo vai dar certo. Por falar nisso, mamãe diz que ele conseguiu o lugar.
 — Ben?
Nancy levantou os olhos inquisitivamente, enquanto recomeçavam a pedalar, a caminho da feira.
— Isso mesmo. Começamos ao mesmo tempo. Em áreas diferentes, é verdade, mas começamos no mesmo dia.
Michael parecia satisfeito. Conhecia Ben desde o tempo do curso preparatório e eram como irmãos.
— Ben já sabe?
Michael sacudiu a cabeça, com um sorriso de conspirador. — Achei que seria melhor deixá-lo experimentar a emoção de receber a notícia oficialmente. Não quis estragar-lhe esse prazer.
Nancy também sorriu.­
— Você é um bom sujeito e eu o amo, Hillyard.
— Obrigado, Sra. H.
— Pare com isso, Michael.
Nancy queria demais aquele sobrenome para ouvi-lo pronunciado como um gracejo, até mesmo por Michael.
— Não vou parar. E é melhor começar logo a se acostumar. — Ele parecia subitamente sério.
— Eu vou me acostumar... quando chegar o momento certo. Mas até lá, no entanto, Srta. McAllister soa melhor. ­
— Por mais duas semanas, para ser exato. Aposto que posso vencê-la numa corrida! ­
E os dois dispararam em frente, lado a lado, ofegando e rindo. Michael alcançou a entrada da feira cerca de 80 segun­dos antes de Nancy. Ambos pareciam bronzeados, saudáveis e despreocupados.
— E então, meu caro senhor, o que vamos fazer primeiro?
 Mas Nancy já adivinhara o que seria e estava absolutamente certa.
— Ao milho cozido, é claro! Precisava perguntar?
— Não.
Deixaram as bicicletas perto de uma árvore, sabendo que ali, naqueles campos tranqüilos, ninguém iria roubá-las. Foram andando de braços dados. Dez minutos depois estavam se lambuzando com a manteiga que escorria, enquanto comiam o milho cozido. Em seguida comeram cachorros-quentes e tomaram cerveja gelada. Nancy acompanhou tudo com uma gigantesca porção de algodão-doce.
— Como pode comer essa porcaria?
— Fácil... porque é delicioso.
As palavras saíram meio truncadas através do algodão-doce rosado e pegajoso, mas Nancy tinha a expressão deliciada de uma criança de cinco anos.
— Já lhe falei ultimamente como você é bonita?
Nancy sorriu-lhe, exibindo o rosto todo salpicado de algodão.
Michael pegou um lenço e limpou-lhe o queixo.
— Se conseguisse limpar-se, poderíamos tirar uma fotografia.
— É mesmo? Onde?
O nariz de Nancy desapareceu novamente por trás de outra porção que ela abocanhou.
— Você é impossível, querida. A fotografia é ali.
Michael apontou para uma barraca em que podiam meter as cabeças através de buracos redondos e tirar uma foto sobre trajes exóticos... Foram até lá e escolheram Rhett Butler e Scarlet O'Hara. E por mais estranho que pudesse parecer, nem mesmo pareciam tolos na fotografia. Nancy ficou linda sobre o traje pintado meticulosamente. A beleza delicada de seu rosto e a precisão das feições se ajustaram perfeitamente ao traje imensamente feminino da beldade sulista. E Michael ficou parecendo um jovem libertino. O fotógrafo entregou-lhes a foto e recebeu o seu dólar, comentando:
—Eu deveria ficar com essa foto. Vocês dois saíram muito bem.
— Obrigada.
Nancy ficou comovida com o elogio, mas Michael limitou-se a sorrir. Ele sempre sentia o maior orgulho de Nancy. Apenas mais duas semanas e... Mas Nancy puxou-lhe a manga freneti­camente, arrancando-o dos devaneios.
— Olhe ali! Um jogo de argolas!
Nancy sempre quisera jogar as argolas na feira quando era criança, mas as freiras do orfanato invariavelmente alegavam que era muito caro.
— Podemos?
— Mas é claro, minha querida!
Michael fez-lhe uma reverência, ofereceu o braço e tentou levá-la caminhando tranqüilamente na direção da barraca. Mas Nancy estava excitada demais para andar normalmente. Estava quase pulando como uma criança e o excitamento dela o delicia­va.
— Podemos jogar agora?
 — Claro, meu amor!
Michael estendeu um dólar e o homem por trás do balcão entregou a Nancy quatro vezes a quantidade habitual de argolas. A maioria dos fregueses pagava apenas 25 cents. Mas Nancy era inexperiente no jogo e todas as suas tentativas malograram. Mi­chael observava-a divertido.
— Exatamente que prêmio está querendo?
— As contas. — Os olhos de Nancy brilhavam como os de uma criança e as palavras saíam quase como um sussurro. — ­Nunca tive antes um colar espalhafatoso!
Era algo que ela sempre desejara ter quando era menina. Algo bem vistoso, brilhante, frívolo.
— Não resta a menor dúvida de que é uma pessoa fácil de contentar, meu amor. Tem certeza de que não prefere o cachorrinho rosa?
Era igual ao que Jeannette levava na cesta. Mas Nancy sa­cudiu a cabeça, determinada.
— Quero as contas.
— Seu desejo é uma ordem para mim.
E Michael arremessou todas as três argolas perfeitamente no alvo. Com um sorriso, o homem por trás do balcão entregou-lhe as contas. Imediatamente, Michael colocou-as no pescoço de Nancy.
Voilà, mademoiselle! Tudo seu! Acha que devemos fazer um seguro de seu colar?
— Quer parar de gozar as minhas contas? Acho que elas são maravilhosas!
Nancy tocou-as suavemente, encantada por saber que estavam faiscando em seu pescoço.
— Acho que você é maravilhosa. Seu coração deseja mais alguma coisa?
Nancy sorriu.
— Mais algodão-doce.
Michael comprou outro chumaço de algodão-doce e depois foram voltando lentamente para as bicicletas.
— Está cansada? ­
— Não muito.
— Não quer seguir um pouco mais adiante? Há um lugar maravilhoso aqui perto. Podemos ficar sentados lá por algum tempo, contemplando o mar.
— Boa idéia.
Partiram novamente, só que desta vez mais devagar. O clima de carnaval desaparecera e estavam ambos imersos em seus pró­prios pensamentos, a maior parte sobre o outro. Michael estava começando a desejar que estivessem de volta à cama e Nancy não teria discordado. Estavam-se aproximando de Nahant quando ela avistou o local que Michael escolhera, na extremidade de uma ponta de terra, sob uma árvore antiga aprazível. Nancy ficou contente por terem feito aquela última etapa do passeio.
— Oh, Michael, é lindo! .
— Não é mesmo?
Sentaram-se na relva, pouco antes da estreita ponta de terra começar. À distância, podiam observar as ondas quebrarem suavemente sobre um recife logo abaixo da superfície.
— Sempre quis trazer você até aqui.
— E estou contente que me tenha trazido.
Ficaram sentados em silêncio por algum tempo, de mãos dadas. Depois, Nancy se levantou abruptamente.
— O que foi?
— Quero fazer uma coisa.
— Pode ir até ali, atrás das moitas.
— Não é isso, seu chato!
Nancy saiu correndo pela praia. Michael seguiu-a lentamen­te, sem ter a menor idéia do que ela pretendia fazer. Nancy parou ao lado de uma pedra grande na areia e tentou deslocá-la, mas não conseguiu­
— Deixe-me ajudá-la, sua tolinha. O que está pretendendo fazer?
Michael estava aturdido.
— Quero apenas afastá-la por um segundo... assim.
A pedra cedera sob a pressão de Michael, revelando uma de­pressão úmida na areia. Rapidamente, ela tirou as contas azuis do pescoço, segurou-as por um momento, de olhos fechados, depois as largou na areia, no lugar sobre o qual a pedra estava antes.
— Muito bem, Michael, pode pôr a pedra de volta no lugar.
— Em cima das contas?
Ela assentiu, os olhos não se desviando do vidro azul a faiscar.
— Essas contas serão o nosso vínculo, um vínculo físico, enter­radas enquanto esta pedra, esta praia e estas árvores continuarem aqui. Combinado?
— Combinado. — Michael sorriu gentilmente. – Estamos sendo muito românticos.
— Por que não? Quando se é afortunado o bastante para se ter amor, temos de comemorar! Fazer com que tenha um lar!
— Tem razão, tem absoluta razão. Muito bem, aqui é o lar do nosso amor.
— E agora vamos fazer uma promessa. Prometo que nunca esquecerei o que está aqui nem esquecerei o que representa. E agora é a sua vez.
Nancy tocou na mão dele, que lhe sorriu novamente. Michael nunca a amara tanto.
— E eu prometo... prometo nunca dizer adeus a você...
E depois, sem qualquer razão em particular, os dois riram. Porque era maravilhoso ser jovem, ser romântico, até mesmo banal. O dia inteiro havia sido maravilhoso.
— Vamos voltar agora?
Nancy assentiu. De mãos dadas, voltaram para o lugar em que haviam deixado as bicicletas. E duas horas depois estavam no pequeno apartamento de Nancy, na Spark Street, perto do cam­pus. Michael olhou ao redor ao cair sonolento no sofá, compreendendo mais uma vez o quanto gostava do apartamento dela, o quanto representava um lar para ele. O único lar verdadeiro que já conhecera. O apartamento gigantesco da mãe em Nova York nunca lhe dera realmente a impressão de lar. Essa impressão ele sentia no minúsculo apartamento de Nancy. Que possuía todos os toques afetuosos e maravilhosos de Nancy. Os quadros que ela pintara ao longo dos anos, as cores simples que escolhera, um sofá de veludo castanho, um tapete felpudo que ela comprara de um amigo. Ha­via sempre flores por toda parte, muitas plantas, às quais ela dedicava um cuidado meticuloso. Lá estavam a pequena mesa de tampo de mármore impecável onde comiam e a cama de latão que rangia de prazer quando faziam amor.
— Tem alguma idéia do quanto amo este apartamento, Nancy.
— Claro que tenho. — Ela olhou ao redor, nostalgicamen­te. — Também amo muito. O que vamos fazer quando nos casarmos?
— Levar todas essas suas coisas lindas para Nova York e encontrar um pequeno lar aconchegante para recebê-las.
E foi nesse momento que algo atraiu a atenção de Michael — O que é isso? Algo novo?
Ele estava olhando para o cavalete de Nancy, onde estava um quadro ainda nos estágios iniciais, mas já apresentando uma qualidade fascinante. Era uma paisagem de árvores e campos. Mas quando se aproximou, Michael percebeu que havia um menino escondido numa árvore, com as pernas pendendo.
— O menino vai continuar a aparecer depois que puser fo­lhas na árvore?
— Provavelmente. De qualquer forma, porém, saberemos que está na árvore. Gosta do quadro?
Os olhos de Nancy brilhavam, enquanto ela observava a apro­vação de Michael. Ele sempre compreendera perfeitamente o tra­balho dela.
— Adoro.
— Então será o seu presente de casamento... quando estiver terminado.
— Negócio fechado. E por falar em presentes de casamento... — Michael olhou para o relógio. Já eram cinco horas da tarde e ele queria estar no aeroporto às seis. — Está na hora de eu partir.
— Precisa mesmo ir esta noite?
— Tenho, sim. É importante. Voltarei dentro de algumas horas. Devo chegar ao apartamento de Marion por volta das sete e meia ou oito horas, dependendo do trânsito em Nova York. Posso pegar o último vôo de volta, às onze horas, chegando em casa por volta da meia-noite. Está bem assim, minha linda angustiada?
— Está bem. — Mas Nancy estava hesitante, apreensiva pela partida dele. Não queria que Michael fosse a Nova York e ao mesmo tempo não sabia por quê. — Espero que tudo corra bem.
— Tenho certeza de que vai correr.
Mas ambos sabiam que Marion só fazia o que queria, só es­cutava o que desejava ouvir e compreendia apenas o que lhe convi­nha. Mas Michael sabia que, de alguma forma, iriam vencê-la. Tinham de fazê-lo. Ele precisava ter Nancy. E nada mais importava. Abraçou-a uma última vez, antes de ajeitar uma gravata no colari­nho da camisa esporte e pegar um casaco leve nas costas de uma cadeira. Deixara-o ali naquela manhã. Sabia que estaria fazendo calor em Nova York, mas sabia também que tinha de aparecer no apartamento de Marion de paletó e gravata. Marion não tole­rava "hippies" ou pessoas insignificantes... como Nancy. Ambos sabiam o que ele estava enfrentando quando se deram um beijo de despedida na porta.
— Boa sorte.
— Eu a amo.
Por longo tempo, Nancy ficou sentada no apartamento si­lencioso olhando para a fotografia que haviam tirado na feira. Rhett e Scarlet, amantes imortais, naqueles trajes absurdos pinta­dos na madeira, os rostos metidos através de buracos. Mas não pareciam tolos. Pareciam felizes. Nancy se perguntou se Marion seria capaz de compreender isso, se ela saberia a diferença entre ser feliz e tolo, entre o real e o imaginário. Tinha dúvidas se Marion poderia entender qualquer coisa.

Capítulo 2

A mesa da sala de jantar brilhava como a superfície de um lago. A perfeição cintilante só era interrompida num ponto, onde estava um único jogo de linho irlandês de cor creme, sobre o qual descansava a porcelana azul e dourada. Havia um serviço de café de prata ao lado do prato, assim como um pequeno sino todo ornado. Marion Hillyard recostou-se na cadeira, deixando escapar um pe­queno suspiro, enquanto exalava a fumaça do cigarro que acabara de acender. Estava bastante cansada naquele dia... Os do­mingos sempre a cansavam. Havia ocasiões em que ela pensava que trabalhava mais em casa do que no escritório. Sempre passava os domingos cuidando de sua correspondência pessoal, examinan­do as contas que a cozinheira e a governanta mantinham rigorosamente em dia, fazendo listas do que julgava ser necessário con­sertar no apartamento e dos artigos que precisava para completar seu guarda-roupa, além de planejar os cardápios da semana. Era um trabalho tedioso; mas há anos que ela o fazia, mesmo antes de começar a dirigir o império da família. Depois que assumira o lugar do marido, continuara a passar os domingos cuidando da casa e tomando conta de Michael, no dia de folga da babá. A recordação a fez sorrir. Fechou os olhos por um momento. Aqueles domingos haviam sido preciosos, umas poucas horas em companhia do filho sem que ninguém interferisse; sem que ninguém apa­recesse para afastá-lo dela. Mas seus domingos já não eram mais assim; haviam deixado de ser há muitos anos. Uma pequena grima brilhante insinuou-se entre as pestanas, enquanto Marion permanecia imóvel na cadeira, vendo o filho como fora dezoito anos antes, um garoto de seis anos e todo dela. Como havia amado aquele menino! Teria feito qualquer coisa por ele. E fizera mesmo. Mantivera um império para Michael, preservando o legado de uma geração para a seguinte. Era o seu presente mais valioso para Michael Cotter-Hillyard. E ela passara a amar o império quase tanto quanto amava o filho.
— Está linda, mamãe.
Os olhos dela se abriram bruscamente, em surpresa, deparan­do com o filho parado na entrada em arcada da sala de jantar revestida de lambris. A visão dele naquele momento quase a fez chorar. Sentiu vontade de abraçá-lo, como o fizera por todos aque­les anos. Em vez disso, porém, limitou-se a sorrir lentamente para o filho.
— Não ouvi você chegar.
Não era um convite para Michael se aproximar, não havia qualquer indício do que ela estava sentindo. Com Marion, nin­guém jamais sabia o que se passava dentro dela.
— Usei minha chave. Posso entrar?
— Claro. Quer uma sobremesa?
Michael avançou lentamente para ela, um tê­nue sorriso nervoso a lhe contrair os lábios. Depois, como um garotinho, deu uma espiada no prato da mãe.
— Hum...o que era? Parece alguma coisa à base de cho­colate...
Marion soltou uma risadinha e sacudiu a cabeça. Michael jamais cresceria. Ou pelo menos não em algumas coisas.
— Profiteroles. Quer um pouco? Mattie ainda está lá na copa.
— Provavelmente comendo o que sobrou.
Ambos riram, pelo que sabiam ser provavelmente verdadeiro.
Mesmo assim, Marion tocou o sino.
Mattie apareceu um instante depois, de uniforme preto, guarnecido de renda, rosto pálido. Ela passara a vida inteira cor­rendo, buscando, fazendo coisas para os outros, com apenas um breve domingo semanal a que podia chamar de todo seu. E quando chegava o “dia” tão cobiçado, ela descobria que nada tinha para fazer.
— Pois não, madame?
— Traga café para Sr. Hillyard, Mattie. E... quer sobremesa, querido? — Michael sacudiu a cabeça — Apenas café então. 
— Pois não, madame.
Por um momento, Michael se perguntou, como já fizera muitas vezes antes, por que a mãe nunca dizia "obrigado" às empregadas. Como se elas tivessem nascido para cumprir suas ordens. Mas ele sabia que era exatamente isso o que a mãe pensava. Marion sempre vivera cercada por criados, secretárias, toda espécie de empregados que se podia imaginar. Tivera uma criação solitária, mas das mais confortáveis. A mãe morrera quando ela tinha três anos, num acidente que vitimara também o único irmão de Marion, que seria o herdeiro do trono arquitetônico da famí­lia. O acidente deixara apenas Marion para assumir o papel de filho substituto. E ela o assumira eficazmente.
— Como vai a escola?
— Quase acabando, graças a Deus. Só faltam mais duas se­manas.
— Sei disso. E estou muito orgulhosa de você. Um doutora­do é algo maravilhoso para se ter, especialmente em arquitetura.
Por alguma razão, aquelas palavras despertaram em Michael o desejo de exclamar, "Oh! Mamãe!", como fazia quando tinha nove anos de idade.
— Vamos entrar em contato com o jovem Avery nesta semana, para acertarmos o emprego dele. Não lhe contou nada, não é mesmo ?
Marion parecia mais curiosa do que austera. Na verdade, não se, importava com tal detalhe. Julgara um tanto infantil que Michael pensasse que era tão importante fazer uma surpresa a Ben.
— Não, não contei. Ele vai ficar muito contente.
— Não é para menos. Afinal, é um excelente emprego.
— Ele merece.
— Espero que sim. — Marion jamais cedia um centímetro sequer. — E você? Está pronto para começar a trabalhar? Sua sala estará pronta na próxima semana.
Os olhos dela brilharam ao pensar nisso. Era um lindo gabinete, todo revestido de madeira, como teria sido o do pai de Michael, com gravuras que haviam pertencido ao pai de Marion, um impressivo conjunto de sofá e poltronas de couro, móveis antigos. Ela os comprara em Londres, nas suas férias.
— Está ficando maravilhoso, querido.
— Ótimo. — Ele sorriu para a mãe por um momento, antes de acrescentar: — Tenho algumas coisas que quero mandar emoldurar, mas vou esperar até dar uma olhada na decoração.
— Não vai haver qualquer necessidade. Já providenciei tudo o que vai precisar para as paredes.
E Michael também tinha. Os quadros de Nancy. Havia agora um fogo súbito em seus olhos, um ar de vigilância e cautela nos olhos de Marion. Ela percebera algo no rosto do filho.
— Mamãe... — Ele se sentou perto da mãe, soltando um pequeno suspiro e esticando as pernas, enquanto Mattie chegava com o café. — Obrigado, Mattie.
 — É sempre bem-vindo, Sr. Hillyard.
Ela lhe sorriu tão afetuosamente quanto sempre o fazia. Ele era sempre amável, como se detestasse incomodá-la, muito dife­rente da...
— Deseja mais alguma coisa, madame?
— Não. Para dizer a verdade... Michael, não quer tomar o café na biblioteca?
— Está certo.
Talvez fosse mais fácil conversar lá. A sala de jantar da mãe sempre o fizera recordar os salões de baile que vira em mansões ancestrais. Não era propícia a conversas íntimas, muito menos a uma suave persuasão. Ele se levantou e seguiu a mãe para fora da sala, descendo três degraus atapetados e entrando na biblioteca, à esquerda. De lá, tinha-se uma vista esplêndida da Quinta Ave­nida e de parte considerável do Central Park. Mas havia também na sala uma lareira aconchegante e duas paredes cobertas de livros. A quarta parede era dominada por um retrato do pai de Michel. Mas era um retrato de que ele gostava, em que o pai parecia extremamente simpático, como alguém que se tinha von­tade de conhecer. Quando menino, Michael ia muitas vezes olhar para aquele retrato e "conversava" em voz alta com o pai. A mãe o descobrira assim certa ocasião e dissera-lhe que isso era um absurdo. Mais tarde, porém, Michael a descobrira chorando naque­la sala, olhando para o retrato, da mesma forma como ele fazia.
A mãe se acomodou em seu lugar de sempre, uma cadeira Luís XV forrada em damasco bege e de frente para a lareira. Naquela noite, o vestido dela era quase da mesma cor. Por um momento, ao clarão da lareira, Michael julgou-a quase bonita. Marion já o tinha sido e não fazia muito tempo. Ela estava agora com 57 anos. Michael nascera quando a mãe tinha 33 anos. Ela não tivera tempo para ter filhos antes disso. Marion era muito bonita naquela época. Possuía os mesmos cabelos louros, quase cor de mel, que Michael tinha, só que agora estavam cada vez mais grisalhos. E a vida em seu rosto se desvanecera. Fora substituída por outras coisas. Principalmente pela preocupação com os negócios. E os olhos outrora de um azul sereno pareciam quase cinzentos agora. Como se o inverno tivesse finalmente chegado.
— Tenho o pressentimento de que veio aqui esta noite para falar-me sobre algo importante, Michael. É isso mesmo?
Será que ele engravidara alguma mulher? Teria destruído o carro? Ferira alguém? Nada era irreparável, é claro, contanto que Michael lhe contasse tudo. Ela estava contente pelo fato do filho ter vindo procurá-la.
— Não é nada de grave. Mas há algo que preciso discutir com você.  
Errado. Michael encolheu-se quase visivelmente diante de suas palavras. "Discutir." Deveria ter falado que havia algo que queria contar e não discutir. Oh,! diabo!
— Achei que já era tempo de sermos francos um com o outro.
— Fala como se geralmente isso não acontecesse.
— Em algumas coisas, não acontece mesmo.
Todo o corpo de Michael estava agora tenso. Ele se inclinou para frente, consciente de que o pai olhava por cima de seu ombro.
— Não somos francos em relação a Nancy, mamãe.
— Nancy?
Ela parecia ignorar inteiramente o nome. Por um instante, Michael sentiu um impulso de levantar-se e esbofeteá-la. Detesta­va a maneira como a mãe pronunciara o nome de Nancy. Como se não passasse de uma criada.
— Nancy McAllister. Minha amiga.
— Ah, sim... — Houve uma pausa interminável, enquanto Marion mudava a posição da colher esmaltada no pires. — E em que não somos francos em relação a Nancy?
Os olhos dela estavam agora velados por uma mortalha de gelo cinzento.
— Tenta fingir que ela não existe. E procuro não incomo­dá-la com isso. Mas a verdade, mamãe, é que... vou me casar com ela. — Ele respirou fundo e recostou-se, antes de arrematar: — Dentro de duas semanas.
— Entendo. — Marion Hillyard estava perfeitamente imó­vel. Os olhos não se mexiam, nem as mãos, nem o rosto. Nada. — E posso perguntar por quê? Ela está grávida?
— Claro que não!
— O que é muita sorte. Sendo assim, posso perguntar por que vai se casar com ela? E por que dentro de duas semanas?
— Porque estarei formado então, mudando-me para Nova York e começando a trabalhar. Porque faz sentido.
— Para quem?
O gelo estava se endurecendo e uma perna foi cruzada cuida­dosamente sobre a outra, com o ruído de seda. Michael sentiu-se constrangido sob a firmeza do olhar da mãe. Ela não desviara os olhos dele uma única vez. Como nos negócios, Marion estava se mostrando implacável. Era capaz de fazer qualquer homem encolher-se e finalmente desmoronar.
— Faz sentido para nós, mamãe.
— Pois não faz para mim. Fomos chamados a construir um centro médico em São Francisco, pelo mesmo grupo que está por trás do Hartford Center. Não terá tempo para uma esposa. Estou contando muito com sua ajuda pelo próximo ano ou dois. Francamente, querido, gostaria que esperasse.
Era a primeira vez que Michael via a mãe abrandar um pouco uma posição, o que o levou a pensar que talvez houvesse alguma esperança.
— Nancy será útil para nós dois, mamãe. Não será uma distração para mim nem um estorvo para você. Ela é uma moça maravilhosa. ­
— É possível. Mas quanto a ser útil... Por acaso já pen­sou no escândalo?
Havia agora um brilho de vitória nos olhos de Marion. Ela estava se preparando para o bote e subitamente Michael prendeu a respiração como presa indefesa, sem saber por que lado a mãe iria atacar. Ou como.
— Que escândalo?
— Ela lhe contou quem é, não é mesmo?
Oh, Deus! O que viria agora?
— O que está querendo insinuar com esse quem ela é?
— Exatamente isso, posso ser mais específica.
Com um movimento suave, felino, Marion largou a xícara numa mesinha e deslizou até sua escrivaninha. Tirou uma pasta da última gaveta e entregou-a a Michael, sem dizer nada. Ele segurou a pasta, indeciso, com medo de ver o que havia dentro.
— O que é isso?
— Um relatório. Contratei um investigador particular para saber quem era a sua amiguinha pintora. Não estava muito sa­tisfeita.
O que era uma atenuação da verdade. Marion ficara furiosa.
— Por favor, Michael, sente-se e leia.
Ele não se sentou, mas relutantemente abriu a pasta e começou a ler. Nas primeiras doze linhas, descobriu que o pai de Nancy fora morto na prisão quando ela ainda era bebê, e que a mãe morrera dois anos depois, como alcoólatra. Estava também expli­cado que o pai dela fora condenado a sete anos de prisão por as­salto a mão armada.
— Não acha que eram pessoas encantadoras, querido?
A voz dela era ligeiramente desdenhosa. Abruptamente, Mi­chael jogou a pasta em cima da escrivaninha. O conteúdo deslizou rapidamente para o chão.
— Não vou ler esse lixo.
— Não quer ler... mas vai casar-se com esse lixo.
— Que diferença faz quem foram os pais dela? Por acaso é culpa de Nancy?
— Não. É o infortúnio dela. E o seu, se casar com ela. Seja sensato, Michael. Vai entrar para um negócio em que milhões de dólares estão envolvidos em cada transação. Não pode mais expor-se ao risco de um escândalo. Poderia nos arruinar. Seu avô fundou esse império há mais de 50 anos e vai agora destruí-lo por causa de um romance? Não seja absurdo. Está na hora de crescer, meu rapaz. Mais do que na hora. Os tempos de aventuras vão se acabar para você exatamente dentro de duas semanas.
Marion estava agora inflamada, sem tirar os olhos do filho. Não ia perder aquela batalha, não importava o que tivesse de fazer.
— Não quero discutir esse problema com você, Michael. Não tem alternativa.
Marion sempre lhe dissera aquilo. Sempre...
— Uma ova que não tenho! — Era um súbito rugido, enquanto ele andava pela sala. — Não vou me inclinar diante de você e de suas regras pelo resto da vida, mamãe! De jeito nenhum! O que está pensando exatamente? Que vai me levar para o negócio, paparicar-me até se aposentar e depois continuar a me controlar como um títere de seu quarto? Pois saiba que isso não vai acontecer! Vou trabalhar para você e mais nada! Não é dona de minha vida, nem agora nem nunca! E tenho o direto de me casar com quem quiser!
— Michael!
Foram interrompidos pelo som abrupto da campainha da porta. Os dois estavam de pé, olhando-se, como jaguares numa jaula. O jaguar velho e o novo, cada um ligeiramente temeroso do outro, ambos famintos pela vitória, ambos lutando pela sobrevivência. Estavam ainda parados em lados opostos da sala, tremendo de raiva, quando George Calloway entrou, percebendo prontamente que viera deparar com uma cena de paixão intensa. Homem suave, elegante, de cinqüenta e tantos anos, ele era há muito tempo o braço-direito de Marion. Mais do que isso, era em grande parte a força por trás da Cotter-Hillyard. Mas, ao contrário de Marion, raramente aparecia na linha de frente. Prefe­ria exercer sua força das sombras. Há muito que aprendera os méritos da força discreta. Isso lhe valera a confiança e admiração de Marion há vários anos, assim que ela assumira o lugar do marido na empresa. Marion fora então apenas uma figura de proa e George é que realmente dirigira a Cotter-Hillyard pelo primeiro ano, enquanto resolutamente, conscienciosamente, ensinava tudo a ela. E George fizera um bom trabalho. Marion aprendera tudo o que ele lhe ensinara e muito mais. Ela era agora uma força por si mesma, mas ainda se apoiava em George em todas as operações de grande monta. Isso significava tudo para ele. Saber que Marion ainda precisava dele depois de todos aqueles anos. Saber que ela sempre precisaria. George podia agora compreender isso. Formavam uma equipe, silenciosa, inseparável, cada um tão forte quanto o outro. Algumas vezes George se perguntava se Michael sabia o quanto eram unidos. Duvidava muito. Michael sempre fora o centro da vida da mãe. Por que iria perceber até que ponto George estava envolvido? Sob certos aspectos, a própria Marion não chegava a compreender. Mas George aceitava tudo. Dedicava seu afeto e energias à empresa. E talvez algum dia... George olhou agora para Marion com uma preocupação imediata. Aprendera a reconhecer a contração nos cantos da boca e a estranha palidez por baixo do pó-de-arroz e rouge cuidadosamente aplicados.
 — Você está bem, Marion?
George conhecia mais a respeito da saúde dela do que qualquer outra pessoa. Marion lhe confidenciara tudo, anos atrás. Alguém tinha de saber, pelo bem da empresa. Ela tinha uma pres­são assustadoramente alta e um problema cardíaco.
Por um momento não houve resposta. Depois, ela desviou os olhos do filho para fixá-los no associado e amigo de muitos anos.
— Estou... estou bem. Desculpe. Boa noite, George. Pode entrar.
— Acho que cheguei num momento errado.
— Absolutamente, George. Eu já estava saindo.
Michael virou-se para fitá-lo e nem ao menos conseguiu exi­bir um arremedo de sorriso. Depois, olhou novamente para a mãe, mas não fez qualquer menção de se aproximar dela.
— Boa noite, mamãe.
— Telefono para você amanhã, Michael. Podemos discutir o problema pelo telefone.
Michael sentiu vontade de dizer algo odioso para a mãe, dei­xá-la amedrontada. Mas não podia, não sabia como. E de que isso adiantaria?
— Michael...
Ele não respondeu. Apertou solenemente a mão de George e depois saiu da sala, sem olhar para trás. Não chegou a ver a expressão nos olhos da mãe ou a preocupação nos de George, en­quanto ela afundava lentamente de volta na cadeira e erguia as mãos trêmulas ao rosto. Havia lágrimas nos olhos dela, que ocultou até mesmo de George.
— O que aconteceu?
— Ele vai fazer uma loucura.
— Talvez não. Todos nós ameaçamos fazer loucuras de vez em quando.
— Em nossa idade, ameaçamos. Na idade de Michael, eles fazem.
"Todos os meus esforços para nada", pensou Marion. "Os rela­tórios do investigador particular, os telefonemas, os..." Ela sus­pirou e recostou-se lentamente na cadeira.
— Já tomou o seu remédio hoje, Marion? — Ela sacudiu a cabeça, quase imperceptivelmente.
— Onde está?
— Na minha bolsa. Atrás da escrivaninha.
George foi até lá, sem fazer qualquer comentário sobre as páginas do relatório espalhadas sobre a mesa e o chão. Encontrou a bolsa de crocodilo preto, com um fecho de ouro de 18 quilates. Conhecia bem aquela bolsa. Fora um presente de Natal dele, três anos antes. Encontrou o remédio e voltou para junto de Marion, com duas pílulas brancas na mão. Ela ouviu o barulho da xícara de café a seu lado e abriu os olhos. Desta vez, Marion sorriu-lhe.
— O que eu faria sem você, George?
— E o que eu faria sem você?
George não podia sequer suportar tal pensamento. — Devo ir embora agora? Você precisa descansar.
— Se ficar sozinha, vou pensar em Michael e me tornarei cada vez mais angustiada.
— Ele ainda vem trabalhar na firma?
— Vem, sim. O problema é outro.
Ou seja, a moça. George também estava a par disso, mas não queria pressionar Marion naquele momento. Ela estava bastante angustiada, mas pelo menos a cor estava agora voltando a seu rosto. Depois de engolir as pílulas, ela pegou um cigarro. George acendeu-o, enquanto observava o rosto dela. Marion era uma linda mulher. Ele sempre o achara. Mesmo agora, quando ela se torna­va cada vez mais cansada e doente. Ele se perguntou se Michael saberia o quanto a mãe estava doente. Provavelmente não sabia, caso contrário não a deixaria transtornada daquela maneira.
O que George não sabia era que Michael estava igualmente desesperado e angustiado naquele momento. Lágrimas ardentes lhe queimavam os olhos, enquanto seguia de táxi para o aero­porto.
Ele telefonou para Nancy assim que chegou ao terminal. Seu avião partiria dentro de 20 minutos.
— Como foi o encontro?
Nancy não pudera perceber coisa alguma pela maneira como ele a cumprimentara.
— Tudo bem. Agora, quero que você entre em ação. Pre­pare uma mala, vista-se, esteja pronta dentro de uma hora e meia, quando estarei chegando aí.
— Pronta para quê?
Nancy estava aturdida, sentada no canto do sofá, toda enros­cada, com o fone na mão. Michael fez uma breve pausa, sorrindo em seguida. Era o seu primeiro sorriso em duas horas.
— Para uma aventura, meu amor. Vai descobrir quando chegar a hora.
— Acho que ficou doido.
Ela estava rindo, aquela sua risada suave e maravilhosa.
— Isso mesmo, estou doido por você.
Michael sentiu que voltava a ser ele próprio. Novamente, tudo começava a fazer sentido. Estava de volta a Nancy. Ninguém poderia jamais tirar isso dele. Nem sua mãe. Nem um relatório confidencial. Ninguém. Nada. Ele prometera naquele dia, na praia, quando haviam enterrado as contas, que nunca diria adeus para Nancy. E estava falando sério.
— Muito bem, Nancy Calçalinda; trate de se mexer! Ah, sim... e não se esqueça de usar algo novo, algo velho...
Ele não estava apenas sorrindo agora; estava transbordando de felicidade.
— Está querendo dizer...
A voz de Nancy se desvaneceu no espanto.
— Estou querendo dizer que vamos nos casar esta noite. Está certo para você?
— Está, sim. Mas...
— Mas coisa nenhuma, mocinha. Levante esse rabo daí e comece a se comportar como uma noiva no dia do casamento.
— Mas por que esta noite?
— Por uma questão de instinto. Confie em mim. Além do mais, é uma noite de lua cheia.
— Deve ser.
Nancy também estava sorrindo agora. Ia casar-se. Ela e Michael iam casar-se.
— Eu a verei dentro de uma hora, meu bem. mais uma coisa, Nancy...
— O que é?
— Eu a amo.
Michael desligou e correu para o portão. Foi o último pas­sageiro a embarcar no avião para Boston. Nada podia detê-lo agora.


Capítulo 3

Ele estava batendo na porta há quase 10 minutos, mas não ia desistir. Sabia que Ben estava lá dentro
— Ben! Vamos, abra a porta! Ben! Pelo amor de Deus, cara, abra logo essa porta!
Outra saraivada de batidas e depois o som de passos, segui­do por um súbito estrondo. A porta se abriu para revelar um Ben sonolento, parado ali, inteiramente atordoado, de cueca, esfregando a canela.
— São apenas 11 horas, Ben. O que está fazendo dormindo a uma hora dessas? — O sorriso no rosto de Ben revelou tudo, a um segundo olhar. — Ei, você está chumbado!
— Até as pontas dos dedos dos pés!
Ben olhou para os pés, com um sorriso malicioso e as pernas balançando tropegamente.
— Pois vai ter de ficar sóbrio bem depressa, companheiro. Preciso de você.
— Quero que você se dane! Tomei seis Beefeaters com tô­nica e acha que vou desperdiçar tudo isso? Essa não!
— Esqueça tudo o mais e trate de se vestir.
— Estou vestido! — Ele contraiu os olhos, com uma cara de infeliz, quando Michael acendeu a luz. — Ei, que diabo está fazendo?
Mas Michael limitou-se a sorrir, enquanto se encaminhava para a pequena cozinha, na desordem mais total.
— O que andou fazendo por aqui, Ben? Detonou uma gra­nada de mão?
— Isso mesmo. E vou meter uma pelo seu...
— Ora, ora, esta é uma ocasião especial, Ben.
Michael virou-se para sorrir-lhe, da entrada da cozinha. Por um momento, houve um brilho de esperança nos olhos de Ben.
— E podemos beber por conta dessa ocasião?
— Tudo o que quiser. Só que depois.
— Essa não!
Ben desabou numa poltrona e deixou que a cabeça recostasse nas almofadas.
— Não quer saber qual é a ocasião, Ben?
— Não, se eu não puder beber por conta. Vou terminar o curso de doutorado. E isso é algo pelo qual posso beber.
— E eu vou me casar.
— Isso é ótimo... — No instante seguinte, Ben se endireitou na poltrona, arregalando os olhos. — Você o quê?
— Ouviu direito o que eu falei. Nancy e eu vamos nos casar.
Michael falou com o orgulho sereno de um homem que sabe o que quer.
— E vamos para uma festa de noivado?
Ben exibia agora uma expressão de satisfação. Ali estava algo que valia pelo menos outra meia dúzia de Beefeaters. Talvez até uns sete ou oito.
— Não é uma festa de noivado, Ben Avery. Já lhe disse. É um casamento.
— Agora? — Confusão novamente. Hillyard era de fato um pé no saco. — Por que agora?
— Porque queremos. Além do mais, você está chumbado de­mais para entender qualquer coisa. Pode dar um jeito para ficar de pé pelo tempo suficiente para ser nosso padrinho?
— Claro. Ora, seu filho da mãe, você vai mesmo...
Ben levantou-se de um pulo da poltrona, cambaleou perigosamente, bateu com o dedão na mesinha do café.
— Mas que merda!
— Trate de vestir algumas roupas sem se matar, Ben. Vou fazer um café para você.
— Está bem.
Ele ainda estava murmurando consigo mesmo quando desapareceu no quarto, mas já estava ligeiramente mais controlado quando voltou. Chegara mesmo a pôr uma gravata sobre a T-shirt listrada de azul e vermelho. Michael fitou-o e sacudiu a cabeça, com um sorriso.
— Poderia pelo menos ter escolhido uma gravata que com­binasse com essa camisa.
A gravata era marrom escura, com padrões beges e pretos.
— Preciso mesmo de uma gravata? — Ben parecia subi­tamente preocupado. — Não consegui encontrar nenhuma que combinasse.
— Basta agora levantar o zíper da calça e estaremos prontos. E talvez seja bom descobrir onde está seu outro sapato.
Ben olhou para os pés e descobriu que estava só com um sapato. Desatou a rir.
— Está certo, estou chumbado. Mas por acaso eu sabia que ia precisar de mim esta noite? Poderia pelo menos ter me contado esta manhã.
— Eu ainda não sabia esta manhã.
Tal resposta provocou uma expressão de seriedade nos olhos de Ben.
— Não sabia?
— Não.
— Tem certeza do que está fazendo?
— Absoluta. E não me venha com sermões. Já ouvi bastante esta noite. Trate apenas de terminar de se arrumar decente­mente para podermos ir buscar Nancy.
Michael entregou ao amigo uma caneca de café fumegante.
Ben tomou um gole prolongado e depois fez uma carranca.
— Mas que desperdício de um bom gim!
— Pagaremos quantos você puder tomar depois do casa­mento.
— Por falar nisso, onde é que vai se casar?
— Já vai descobrir. É uma cidadezinha linda, pela qual estou apaixonado há anos. Passei um verão lá quando era menino. É o lugar perfeito.
— Tem uma licença?
— Não há necessidade. É uma dessas cidadezinhas malucas em que as pessoas podem casar-se com a cara e a coragem. Está pronto?
Ben engoliu o resto do café e assentiu.
— Acho que sim. Puxa estou começando a ficar nervoso.  Não está apavorado?
Ele olhou para o amigo, mais sóbrio agora. Mas Michael parecia estranhamente calmo.
 — Nem um pouco.
— Talvez saiba o que está fazendo. Não sei... é que... o casamento... — Ben sacudiu a cabeça e olhou novamente para os pés, o que o fez recordar que ainda precisava encontrar o ou­tro sapato. — Mas Nancy é uma garota sensacional.
— Muito mais do que isso. — Michael avistou o outro sa­pato debaixo do sofá, e pegou-o. — Ela é tudo o que sempre desejei.
— Então espero que o casamento proporcione aos dois tudo o que querem, Michael. Para sempre.
Havia um brilho de ternura nos olhos de Ben e por um momento Michael segurou-o pelos braços.
— Obrigado.
E no instante seguinte os dois desviaram o olhar, ansiosos em partirem, para rirem novamente, para saborearem o momento com alegria, ao invés de solenemente.
— Estou apresentável?
Ben apalpou a calça para verificar se estava com a carteira, depois procurou as chaves.
— Está deslumbrante.
— Ora, vá... Mas onde é que se meteram as minhas chaves?
Ben olhou ao redor, desolado, enquanto Michael ria. As cha­ves estavam presas numa das presilhas de cinto da calça dele.
— Vamos logo embora, Avery. Já estamos atrasados.
Os dois partiram, de braços dados, entoando canções de cervejaria de verões anteriores. Todo o prédio podia ouvi-los, mas ninguém se importava realmente. Era povoado por estudantes que viviam nas proximidades do campus e todos andavam pro­movendo os maiores tumultos, quando faltavam duas semanas para terminarem as aulas.
Dez minutos depois, estavam diante do prédio de Nancy, na Spark Street. Ela acenou nervosamente da janela quando Michael buzinou. Tinha a sensação de que estava pronta há horas. Um momento depois, estava parada ao lado do carro. Por alguns segundos, os dois rapazes ficaram em silêncio. Foi Michael o pri­meiro a falar:
Deus do céu, Nancy... você está maravilhosa! Onde conseguiu esse vestido?
— Eu o tinha.
Eles trocaram um sorriso prolongado. Nenhum dos dois se mexeu. Nancy sentiu-se de repente uma noiva da cabeça aos pés, apesar da hora tardia e das circunstâncias heterodoxas. Usava um vestido branco comprido e tinha uma pequena touca azul de cetim sobre os cabelos pretos lustrosos. O vestido fora comprado quando servira como dama de honra no casamento de uma amiga, três anos antes, mas Michael nunca o tinha visto. Ela estava de sandálias brancas e levava um lenço de renda muito antigo e bonito.
Está vendo, Michael? Algo velho, algo novo... o lenço era de minha avó.
E a pequena touca era azul. Ela estava tão bonita que, por um momento, Michael ficou sem saber o que dizer. Até mesmo Ben parecia ter ficado completamente sóbrio pela contemplação dela..
— Está parecendo uma princesa, Nancy.
— Obrigada, Ben.
— Ei, você tem algo emprestado?
— Como assim?
— Não está lembrada? Algo velho, algo novo... algo emprestado... — Nancy riu e sacudiu a cabeça. — Pois aqui está algo emprestado.
Ben inclinou a cabeça para frente e começou a mexer em algo no pescoço. Um momento depois, ele exibiu uma corrente de ouro delicada e bonita.
— É apenas um empréstimo. Minha irmã me mandou de presente de formatura, mas abri antes. Pode tomar emprestado para o casamento.
Ele se inclinou para fora do carro a fim de prender a cor­rente no pescoço de Nancy. Terminava um pouco acima da gola rendada do vestido.
— É perfeito.
— Assim como você.
 O comentário foi de Michael, que saiu do carro nesse mo­mento e abriu a porta para Nancy entrar. Ele ficara tão atordoa­do pela aparência dela que por algum tempo fora incapaz de pensar.
— Vá para trás, Avery. Você senta na frente, querida.
— Ela não pode sentar no meu colo?
Ben murmurou um débil protesto, enquanto se transferia para o banco traseiro. Michael sacudiu-lhe o dedo.
— Não precisa ficar nervoso, cara. Apenas pensei que por ser o padrinho podia...
— Vai acabar virando um homem morto se não tomar mais cuidado, Avery.
O ânimo de ambos era da mais intensa alegria, sendo as palavras pronunciadas em tom zombeteiro. Nancy acomodou-se no banco da frente e fitou radiante o homem com quem estava pres­tes a casar. Sentiu um momento de apreensão ao pensar em Ma­rion, mas tratou de afastar o problema de sua mente. Aquele era um momento para pensar apenas em si mesma. E em Michael.
— Que noite mais doida... mas estou adorando!
Alternadamente, gracejaram e ficaram em silêncio, no caminho para a pequena cidade em que Michael estava pensando. Chegou finalmente o momento em que nenhum dos três falou mais qualquer coisa. Tinham uma porção de coisas em que pensar. Michael estava recordando o encontro com a mãe, enquanto Nancy pensava em tudo o que aquele dia representava para ela.
— Ainda falta muito, amor?
Nancy estava começando a ficar nervosa e o lenço da avó parecia cada vez mais amarrotado, espremido entre as mãos.
— Faltam apenas sete ou oito quilômetros. Estamos quase chegando... — Michael acariciou por um momento a mão de Nan­cy. — Só mais alguns minutos, querida, e estaremos casados.
— Pois então trate de acelerar, mister, antes que eu fique de pés frios — cantarolou Ben, no banco de trás.
Michael calcou o acelerador e entrou na curva seguinte, en­quanto os três riam. Mas as risadas rapidamente se transforma­ram em arquejos, enquanto Michael dava uma guinada desespe­rada no volante, tentando inutilmente evitar um caminhão que ocupava as duas pistas, avançando na direção deles, depressa de­mais, quase descontrolado. O motorista devia estar meio adorme­cido. Nancy recordou-se depois de ter ouvido o grito angustiado de Ben:
— Oh, não!
E sua própria voz, ressoando em seus ouvidos. E depois houve o barulho interminável de vidro espatifado, metal rangendo, sen­do destroçado, motores se encontrando, couro e plástico sendo rasgado, tudo se cobrindo com uma mortalha de fragmentos de vidro. E depois, finalmente, tudo parou, o mundo ficou totalmen­te escuro.
Parecia que se haviam passado muitos anos quando Ben des­pertou, a cabeça comprimida contra o painel, um latejar horrí­vel nos ouvidos. Tudo estava escuro ao seu redor e parecia haver um punhado de areia em sua boca. Teve a sensação de que transcorreram mais algumas horas antes que conseguisse abrir os olhos. O esforço deixou-o terrivelmente enjoado, sentindo-se mal. A princípio, não pôde compreender o que viu. Nada parecia fazer sen­tido. Depois, compreendeu que olhava para o olho direito de Michael. Estava no banco da frente com ele, mas tudo o que podia ver era Michael. E havia um filete de sangue escorrendo lenta­mente pelo lado do rosto de Michael, continuando pelo pescoço. Era estranho ficar observando, mas por algum tempo foi tudo o que Ben fez... observar... Michael... sangrando... Santo Deus! Ocorreu-lhe finalmente o que estava acontecendo. Aciden­te... houvera um acidente... ele e Michael estavam no carro e... Ben levantou a cabeça e tentou divisar mais alguma coisa, mas um golpe, que parecia de uma barra de ferro, obrigou-o a baixá-la novamente. Alguns minutos se passaram antes que ele conseguisse recuperar o fôlego e pudesse abrir os olhos novamente. Michael ainda estava caído no mesmo lugar, sangrando. Mas Bem pôde agora constatar que o amigo estava respirando. Desta vez, quando ele se mexeu, nada aconteceu. Pôde levantar a cabeça. O que viu, além de Michael, foi o caminhão que os abal­roara, à beira da estrada, capotado. O que ele não viu foi o mo­torista, sob a cabina do caminhão, morto. Algum tempo se passa­ria antes que alguém visse isso. E depois Ben compreendeu algo mais, que estava vendo tudo através de janelas abertas. Não res­tava mais vidro intacto em qualquer lugar do carro. O vidro estava por cima deles, espatifado em pequenos fragmentos ao redor deles. E no lado de Michael também não havia porta. No instante seguinte, Ben recordou-se de mais uma coisa. Havia outra pessoa no carro... Nancy estava com eles, e para onde estavam indo?
Era muito difícil lembrar-se das coisas, ver tudo direito. A cabeça de Ben doía terrivelmente. Quando ele se mexeu, uma dor terrível subiu-lhe pela perna, continuou pelo lado do corpo. Ele se mexeu para o outro lado, a fim de se livrar da dor. E foi nesse momento que a viu. Nancy... oh, Deus... era Nancy, numa espécie de roupa vermelha e branca, caída sobre o capô, o rosto virado para baixo... Nancy... ela só podia estar morta... Ben já não se importava mais com a dor em sua perna. Arrastou-se por cima do painel, aproximando-se dela. Ele tinha de virá-la... alcançá-la... ajudá-la... Nancy... E foi então que per­cebeu a poeira tênue que cobria os cabelos de Nancy. Ela estava usando o pára-brisa por cima do vestido, sobre a nuca, sobre... Santo Deus! Com suas últimas reservas de energia, ele a rolou lentamente para o lado.. E depois, desoladamente, com um ga­rotinho aterrorizado.
 — Oh, Deus...
Não mais havia qualquer rosto por baixo da touca azul de cetim ensopada de sangue. Ele não podia dizer se Nancy estava morta ou viva. Mas, por um instante horrível, esperou que ela estivesse morta. Porque simplesmente não existia mais nenhuma Nancy. Não restava absolutamente mais ninguém ali, nem mes­mo um remanescente do rosto outrora bonito. E depois, misericordiosamente, entre o sangue de Nancy e as suas próprias lá­grimas, Ben desmaiou.


Capítulo 4

Ele parecia terrivelmente pálido, com a mãe sentada ali a observá-lo. Marion Hillyard, sentada num canto do quarto, tinha uma expressão desolada. Já estivera ali antes, naquele quarto, na­quele dia, observando aquele rosto... não realmente aquele rosto ou aquele quarto, mas ela tinha a sensação de que nada mudara. Era exatamente como na ocasião em que Frederick tivera o infarto fulminante que o matara em poucas horas. Ela ficara sentada ali, igualmente imóvel, igualmente apavorada, igualmente sozinha. E ele acabara... Frederick... Marion sentiu novamente um soluço subir por sua garganta e respirou fundo. Não podia chorar. Não podia deixar-se dominar por aqueles pensamentos. O marido morrera. Michael não ia morrer. Nada aconteceria a Michael. Ela não deixaria que coisa alguma lhe acontecesse. Estava agora fazendo-o resistir com as últimas reservas de energia que podia dar.
Por um momento, ela desviou o olhar para o rosto da enfermeira. A mulher estava observando Michael atentamente, mas não havia qualquer sinal de alarme em sua atitude. Ele passara o dia inteiro em estado de coma, desde o acidente na noite anterior. Marion chegara ali às cinco horas da manhã. Telefonara para um serviço de limusine que funcionava 24 horas por dia e viera de carro de Nova York. Mas teria vindo a pé, se fosse necessário. Nada a impediria de ficar ao lado de Michael. Tinha de estar ali para mantê-lo vivo. Michael era agora tudo o que ela tinha. Michael e a firma... e a firma era para ele. Fizera tudo para Michael... isto é, nem tudo por ele, mas a maior parte. Era o maior presente que podia dar ao filho. O presente do poder, do sucesso. Michael não podia jogar tudo fora por causa daquela sem-vergonha... assim como não podia perder tudo morrendo. Oh, Deus! Era tudo culpa dela, daquela maldita mulher. Ela provavelmente persuadira Michael a fazer aquilo. Ela...
A enfermeira levantou-se abruptamente e puxou as pálpebras de Michael. Marion ficou tensa e esqueceu tudo o que estava pensando. Ela também se levantou, silenciosamente, indo postar-se ao lado da enfermeira. O que quer que houvesse para ver, ela queria ver. Mas não havia nada. Nenhuma mudança. A mulher inexpressiva de branco pegou o pulso de Michael por um mo­mento e depois formou com a boca as mesmas palavras de sempre:
— Continua na mesma.
Ela fez um gesto na direção do corredor e Marion seguiu-a para fora do quarto. Desta vez, a preocupação da enfermeira não era com Michael, mas sim com a mãe.
— O Dr. Wickfield pediu-me que lhe dissesse que devia sair às cinco horas, Sra. Hillyard. E, infelizmente...
Ela olhou ameaçadoramente para o relógio e depois sorriu, como se pedisse desculpas. Eram 5h15min. Marion estava ao lado de Michael há exatamente 12 horas. Ficara sentada ali durante o dia inteiro, ininterruptamente, com apenas duas xícaras de café para se manter. Mas não estava cansada, não estava com fome, não estava coisa alguma. E não ia embora.
— Obrigada pela gentileza. Vou andar um pouco pelo corredor e depois voltarei.
Ela não ia deixar Michael. Nunca mais. Deixara Frederick. Apenas por uma hora, para jantar. Haviam insistido que ela comesse alguma coisa e fora nessa ocasião que Frederick morrera. Morrera enquanto ela estava ausente. O que não ia acontecer desta vez. Ela sabia que Michael não morreria enquanto estivesse sentada ali no quarto. As lesões haviam sido principalmente internas, mas o próprio Wickfield achava que Michael poderia em breve emergir do estado de coma. De qualquer forma, Marion não estava disposta a correr qualquer risco. Haviam também pensado que Frederick iria em breve se recuperar. Havia agora lágrimas nos olhos dela, enquanto ficava parada ali, os olhos vazios fixados na parede azul-clara por trás da enfermeira.
— Sra. Hillyard? — A mulher tocou-lhe gentilmente o bra­ço e Marion estremeceu. — Deve descansar um pouco. O Dr. Wickfield reservou-lhe um quarto no terceiro andar.
— Não há necessidade.
Marion sorriu inexpressivamente para a enfermeira e afas­tou-se pelo corredor. O sol ainda brilhava na janela na extremidade do corredor. Ela se sentou cuidadosamente no peitoril da janela, para fumar o seu primeiro cigarro em horas e contemplar o sol se pôr atrás de uma igreja branca naquela agradável cidadezinha da Nova Inglaterra. Graças a Deus que a cidade apenas parecia remota, quando na verdade estava a menos de uma hora de carro de Boston. Não houvera a menor dificuldade em trazer os melhores médicos para examinarem Michael. Assim que estivesse em condições Michael seria transferido para um hospital em Nova York. Até lá, ela sabia que, pelo menos, o filho estaria em boas mãos. Em termos médicos, fora Michael quem mais sofrera. O rapaz Avery saíra bastante machucado do acidente, mas estava desperto e vivo. O pai levara-o de ambulância para Boston, naquela tarde. Ele quebrara um braço, uma perna, um pé e uma clavícula, mas iria recuperar-se inteiramente. E, a moça... ora, tudo fora culpa dela, não havia razão para que devesse... Marion apagou o cigarro com um movimento vigoroso do pé. A moça também ficaria boa. Isto é, pelo menos viveria. A única coisa que ela perdera havia sido o rosto. E talvez tivesse sido até melhor assim. Por uma fração de segundo, Marion quis combater a raiva que sentia, desejou sentir pena da moça... para o caso de toda aquela baboseira sobre caridade cristã ser verdadeira, para o caso de seus sentimentos fazerem alguma diferença para Michael... e pela possibilidade de haver um Deus que pudesse puni-la. Mas não conseguiu. Odiava a moça até o fundo de seu coração.
— Pensei ter deixado ordens para que fosse descansar um pouco.
Marion virou-se na direção da voz, com um sobressalto. Sorriu, cansada, ao deparar com o seu Dr. Wickfield. Wicky.
— Será que nunca acata o que os outros dizem, Marion?
— Não, se puder evitá-lo. Como está Michael?
Ela estava com o cenho franzido, enquanto pegava outro cigarro.
— Acabei de dar uma olhada. Ele continua estável. Já lhe disse que ele vai sair do estado de coma, mas é preciso dar-lhe algum tempo. Todo o seu organismo recebeu um tremendo choque.
— Foi o que também aconteceu comigo, quando recebi a notícia. — O médico assentiu, com uma expressão compreensiva. — Tem certeza de que não haverá lesões permanentes? — Marion fez uma breve pausa, antes de acrescentar as palavras terríveis: — Lesões cerebrais?
Wickfield afagou-lhe o braço e sentou-se a seu lado no peitoril da janela. Por trás deles, a cidadezinha era um cenário digno de um cartão-postal.
— Já lhe falei tudo, Marion. Na medida em que podemos prever, ele ficará inteiramente bom. Mas é claro que muito vai depender do tempo em que permanecer em estado de choque. Mas posso afirmar-lhe que ainda não estou assustado.
— Mas eu estou.
Eram três palavras bem pequenas na boca de uma mulher muito forte. Surpreenderam o seu médico, que a fitou atentamente. Havia facetas de Marion Hillyard de que ninguém jamais suspeitava.
— Como está a moça? — indagou ela.
Agora ela era novamente a Marion que Wickfield sempre conhecera, os olhos estreitados por trás da fumaça do cigarro, o rosto duro, o medo dissipado.
— Não há muita coisa que possa mudar para ela. Ou pelo menos não por enquanto. O estado dela permaneceu estável durante o dia inteiro, mas não há absolutamente nada que possamos fazer por ela. Por um lado, porque ainda é muito cedo; por outro, porque só existem dois homens em todo o país que podem cuidar desse tipo de reconstrução total. Não restou absolutamente nada no rosto dela, nem um único osso intacto, nervo ou músculo. Somente os olhos é que não foram totalmente destruidos.
— Melhor assim, porque dessa forma ela poderá contemplar a si mesma.
O Dr. Wickfield teve um sobressalto com o tom de voz de Marion.
— Michael é que estava dirigindo, Marion. Não era ela.
Mas Marion limitou-se a assentir em resposta. Não havia sentido em insistir no assunto com Wickfield. Ela sabia de quem era a culpa. Era toda da moça.
— O que acontece com alguém nesse estado, se o trabalho de reconstrução não for feito? Ela viverá?
— Infelizmente, sim. Mas levará uma vida trágica. Não se pode pegar uma moça de 20 anos e transformá-la num horror desse tipo esperando que se ajuste. Ninguém pode ajustar-se. Ela era... bonita antes do acidente?
— Acho que era. Mas não sei com certeza. Nunca nos en­contramos.
A voz de Marion era dura como rocha, assim como os olhos.
— Entendo. Seja como for, ela vai enfrentar uma terrível realidade. Farão tudo o que for possível aqui no hospital, assim que ela melhorar um pouco. Mas não poderá ser muita coisa. Ela por acaso tem dinheiro?
— Nenhum.
Marion pronunciou a palavra como se fosse uma sentença de morte. Era a pior coisa que podia dizer a respeito de qualquer pessoa.
— Então ela não tem muitas opções. Infelizmente, os homens que fazem esse tipo de trabalho não são de fazer caridade.
— Já pensou em alguém em particular?
— Conheço alguns nomes. Dois, para ser mais exato. O melhor está em São Francisco. — Um pequeno fogo ateou-se no co­ração do Dr. Wickfield. Com todo o seu dinheiro, Marion Hil1yard podia... se ao menos... — O nome dele é Peter Gregson. Nós nos conhecemos há alguns anos. É realmente um homem extraordinário.
— Ele seria capaz de fazer um trabalho desses?
Wickfield sentiu um impulso de admiração pela mulher. Sentiu vontade de abraçá-la, mas não se atreveu. .
— É bem possível que ele seja o único homem capaz de fazê-lo. Devo... quer que eu entre em contato com ele?
Ele hesitou em dizer as palavras. Marion fitou-o com seus olhos frios e calculistas e Wickfield ficou sem saber o que ela estava pensando. A onda de admiração quase se transformou em medo.
— Eu lhe direi quando chegar o momento.
 — Está certo. — Wickfield olhou para o relógio e depois se levantou. — Gostaria que descesse agora e descansasse um pouco. Estou falando sério.
— Sei disso. — Marion presenteou-o com um sorriso frio. — Mas acontece que não vou descansar. E você sabe disso também. Tenho de ficar ao lado de Michael.
— Mesmo que se matasse fazendo isso?
— Não vou me matar. Sou ruim demais para morrer, Wicky. Além disso, ainda tenho muito trabalho a fazer.
— E vale a pena?
Wickfield fitou-a com curiosidade por um momento. Se ti­vesse um décimo da ambição dela, teria sido um grande cirurgião. Mas não tinha e por isso não era. E nem mesmo tinha certeza se a invejava.
— E vale a pena?
Na segunda vez, ele falou mais suavemente. Marion assentiu.
— Claro que vale. Jamais duvide disso, por um segundo sequer. Tem-me dado tudo o que quero da vida.
A menos que eu perca Michael. Marion fechou os olhos, tratando de afastar o pensamento da mente.
 — Muito bem, vou deixá-la mais uma hora com Michael e depois voltarei para cá. E vou obrigá-la a descansar nem que tenha de aplicar-lhe Nembutal e arrastá-la pessoalmente para fora do quarto. Entendido?
— Está certo. — Marion levantou-se, deixou cair o outro cigarro no chão, esmagou-o com o pé, afagou o rosto dele ligeiramente. — E Wicky... — Ela o fitou sob as pestanas castanhas compridas. Por um momento, era toda suavidade e beleza castanha. — ... obrigada.
Ele a beijou gentilmente no rosto, apertou-lhe o braço e depois recuou por um momento.
— Ele vai ficar bom, Marion. Você vai ver.
Ele não se atreveu a mencionar a moça novamente. Poderiam voltar a falar sobre isso mais tarde. Limitou-se a sorrir e afastou-se, enquanto Marion continuava parada no mesmo lugar, parecendo vulnerável e solitária. Wickfield sentiu-se conten­te por ter se lembrado de telefonar para George Calloway, poucas horas antes. Marion precisava de alguém a seu lado. Wickfield não parou de pensar nela enquanto avançava pelo corredor. Marion ficou parada, observando-o afastar-se. Só depois que ele sumiu é que ela começou a avançar pelo corredor, um vulto solitário, a caminho do quarto de Michael, passando por portas abertas e fechadas, por desesperos que estavam para chegar e esperanças que jamais se concretizariam. E umas poucas que sobreviveriam. Aquele andar estava reservado para os doentes em estado crítico e não saía qualquer ruído dos quartos pelos quais ela passava, lentamente. Já estava na metade do corredor quando ouviu soluços convulsivos saindo por uma porta aberta. Os sons eram tão baixos que a princípio Marion não teve certeza se estava mesmo ouvindo alguma coisa. E foi então que viu o número do quarto e compreendeu tudo. Estacou abruptamente, como se tivesse esbarrado numa parede invisível. Olhou para a porta e para a escuridão além.
Podia avistar a cama no canto, os contornos meio indefinidos. Mas o quarto estava às escuras. Todas as persianas e cortinas estavam fechadas, como se a paciente não pudesse ser atingida pela luz. Marion ficou parada ali por um longo tempo, com receio de entrar no quarto, mas sabendo que tinha de fazê-lo. Lentamente, um pé depois do outro, suavemente, quase deslizando, ela avançou um pouco pelo quarto. E parou novamente. Os soluços eram um pouco mais altos agora e soando a intervalos mais rápidos, com ligeiros arquejos de pânico.
— Há alguém aí?
Toda a cabeça da jovem estava envolta por ataduras e a voz soava abafada e estranha.
— Há alguém aí? — A voz tornou-se um pouco mais alta. — Não posso ver.
— Seus olhos estão apenas cobertos por ataduras. Não há nada de errado com seus olhos. — Mais tais palavras foram re­cebidas por novos soluços. — Por que está acordada?
Marion falava num tom impassível. Não eram palavras visando a tranqüilizar, mas sim palavras inteiramente destituídas de toda e qualquer emoção. A própria Marion tinha a sensação de que estava falando num sonho. Mas sabia que tinha de estar ali.  Não havia outro jeito. Pelo bem de Michael.
— Não lhe deram nada para dormir?
— Não funciona. Continuo acordando a todo instante.
— A dor é terrível demais?
— Não. Sinto o corpo todo dormente. Quem... quem é você?
Marion ficou com medo de dizer. Em vez disso, aproximou-se da cama e sentou-se na cadeira azul estreita que alguma enfermeira devia ter deixado ali. As mãos da moça também estavam envoltas em ataduras e pediam nos lados, inúteis. Marion recordou-se de que Wicky lhe dissera que a moça naturalmente usara as mãos para proteger o rosto. As lesões nas mãos eram tão grandes quanto no rosto, o que seria terrível para ela, por ser uma pintora. Em suma, toda a vida daquela moça estava praticamente liquidada. A juventude, a beleza, o trabalho. E o seu romance. Mas agora Marion sabia o que tinha de dizer.
— Nancy... — era a primeira vez que ela pronunciava o nome, mas agora isso não tinha importância. Não havia alternativa. — Eles...
Marion fez uma pausa. Sentada ali, ao lado da jovem mutilada, sua voz era suave e insinuante.
Houve um silêncio total no quarto por um tempo interminável. Depois, um pequeno soluço angustiado emergiu do meio das ataduras.
— Já lhe falaram sobre o terrível estado em que seu rosto ficou?
Marion sentiu o estômago revirar-se ao pronunciar tais palavras, mas não podia parar agora. Tinha de libertar Michael. Se o libertasse, ele viveria. Ela podia sentir isso no fundo de si mesma.
— Já lhe contaram como seria impossível reconstituí-lo com perfeição?
Os soluços eram agora furiosos.
— Mentiram para mim! Disseram...
— Só há um homem que pode realizar o trabalho com perfeição, Nancy. E custaria centenas de milhares de dólares. Não tem condições de pagar. Nem Michael.
— Eu jamais permitiria que Michael pagasse! — Ela es­tava agora furiosa com a voz, assim como se revoltava contra o destino. — Nunca permitiria...
— E o que vai fazer então?
 Os soluços recomeçaram
— Poderia enfrentá-lo desse jeito?
Demorou alguns minutos para que o “não” sufocado saísse do meio das ataduras.
— Acha que ele iria amá-la desse jeito? Mesmo que ele tentasse, por sentir algum vinculo de lealdade, alguma obrigação, quanto tempo acha que poderia durar? Quanto tempo você suportaria saber sua aparência e o que está fazendo com ele?
Os sons que Nancy emitia agora eram assustadores. Ela dava a impressão de que estava passando muito mal e Marion perguntou-se qual teria sido sua reação naquelas circunstâncias.
— Não restou nada de você, Nancy. Absolutamente nada. Nada restou da vida que você tinha antes deste dia.
 As duas permaneceram num silêncio interminável. Marion tinha a impressão de que iria ouvir aqueles soluços para sempre. Mas tinha que ser doloroso, caso contrário não daria certo.
 — Já o perdeu, Nancy. Não pode fazer uma coisa dessas com ele. E ele... ele merece muito mais do que isso. Se o ama, sabe disso. E... e você também merece. Mas pode ter uma vida nova, Nancy.
A moça nem mesmo se deu ao trabalho de responder, continuando a soluçar.
 — Pode ter uma vida nova, Nancy. Um mundo inteiramen­te novo. — Marion esperou, até que os soluços se tornaram no­vamente furiosos e depois cessaram. — Um rosto inteiramente novo, Nancy.
— Como?
— Há um homem em São Francisco que pode torná-la bonita novamente. Que pode fazê-la capaz de pintar outra vez. Le­varia muito tempo, um dinheiro incalculável. Mas valeria a pena, Nancy... não acha?
Havia agora um sorriso incipiente nos cantos da boca de Ma­rion. Estava em terreno familiar. Era como fazer uma transação de muitos milhões de dólares. Uma transação de 100 milhões de dólares. No final, era tudo a mesma coisa.
Um pequeno suspiro entrecortado emergiu das ataduras.
— Nós não temos condições para um tratamento desses.
Marion quase estremeceu ao ouvir o "nós". Não eram mais um "nós". Nunca haviam sido. Ela, Marion, e Michael é que eram o "nós". Não aquela... aquela... Marion respirou fundo, tratando de recuperar o controle. Tinha um trabalho a fazer. Era a única maneira pela qual podia pensar sobre o caso. Não podia pensar na moça. Apenas em Michael.
— Vocês não podem, Nancy. Mas eu posso. Sabe agora quem eu sou, não é mesmo?
— Sei.
— Pode compreender que já perdeu Michael? Que ele não pode sobreviver à pressão e tragédia do que lhe aconteceu, se é que conseguirá escapar com vida do acidente? Pode compreen­der isso, não é mesmo?
— Posso.
— E sabe que seria uma iniqüidade tentar submetê-lo a essa provação, fazê-lo demonstrar a sua lealdade para com você?
Marion não queria dizer a palavra "amor". Aquela moça não era digna de tanto. E isso era algo em que Marion tinha de acre­ditar de qualquer maneira.
— Pode compreender isso, Nancy? — Houve um momento ele silêncio. — Pode, Nancy?
Desta vez, a resposta foi uma palavra, desesperada, exausta, desolada:
— Posso.
— O que significa que já perdeu tudo o que podia perder, não é mesmo?
— É, sim.
Novamente a voz soava destituída de inflexão, sem qualquer vida. Era como se a própria vida estivesse se escoando da moça.
— Nancy, eu gostaria de lhe propor um pequeno acordo.
Era Marion Hillyard no melhor de sua classe. Se o filho pu­desse ouvi-la naquele momento, sentiria vontade de matá-la.
— Gostaria que pensasse sobre aquele rosto novo. Sobre uma nova vida, uma nova Nancy. Pense nisso. Sobre o que poderia representar. Seria bonita novamente, poderia outra vez ter amigos, poderia ir a lugares... restaurantes, cinemas, lojas... poderia vestir roupas bonitas e sair com homens. A alternativa... as pessoas se encolhendo e recuando quando você se aproximar. Não poderia ir a lugar nenhum, não poderia fazer coisa alguma, não seria ninguém. As crianças chorariam se a vissem. Pode imaginar o que seria viver assim? Mas tem uma opção. ­
Marion parou de falar, dando tempo para que a moça absor­vesse suas palavras.
— Não, não tenho.
— Tem, sim. Quero dar-lhe essa opção. Eu lhe darei essa nova vida. Um novo rosto, um novo mundo. Um apartamento em outra cidade, enquanto o trabalho estiver sendo realizado... qualquer coisa que precisar, qualquer coisa que quiser. Não haverá qualquer dificuldade. Dentro de um ano mais ou menos, Nancy, o pesadelo estará terminado.
— E depois?
— Você estará livre. A. nova vida lhe pertencerá.
Houve uma pausa interminável, enquanto Marion se prepa­rava para desfechar o golpe de misericórdia que Nancy estava esperando.
— Contanto que você nunca mais volte a entrar em contato com Michael. O novo rosto será seu somente se renunciar a Michael. Mas se não aceitar... meu presente, sabe que de qualquer maneira já o perdeu. Assim, por que viver o resto de sua vida como uma aberração, se não tem necessidade?
— E, se Michael não quiser respeitar o acordo? E se eu me afastar dele, mas Michael não quiser ficar longe de mim?
— Tudo o que quero de você é a promessa de que ficará longe dele. O que Michael quiser fazer é problema dele.
— E você vai respeitar isso? Se Michael me quiser... se vier atrás de mim... então é tudo com ele?
— Respeitarei isso.
Deitada ali, Nancy sentiu-se vitoriosa. Conhecia Michael infinitamente melhor que a mãe dele. Michael jamais renunciaria a ela. Acabaria por encontrá-la e insistiria em ajudá-la a superar a provação. A esta altura, ela já estaria a caminho de se tomar a mesma Nancy de antes. A mãe dele não poderia vencer, por mais que tentasse. Aceitando o acordo, Nancy estaria de certa forma trapaceando, pois já sabia qual seria o resultado. Mas tinha de aceitar. Não havia alternativa.
— Vai aceitar?
Marion quase perdeu a respiração, enquanto esperava pela palavra por que estava rezando, a palavra que libertaria Michael. E finalmente essa palavra chegou.
Mas seria uma palavra de vitória, não de derrota. Estaria impregnada com toda a fé que Nancy depositava em Michael. Ela se recordou das palavras que Michael lhe dissera na praia, na manhã anterior, ao esconderem as contas: "Prometo nunca dizer adeus". Ela sabia que ele jamais o faria.
— Qual é a sua resposta, Nancy?
Marion não podia esperar por mais tempo. O coração dela não suportaria.
— Sim.